Folha de S.Paulo

A Lava Jato apoia isso?

Sob Bolsonaro, junho de 2013 teria GLO com excludente de ilicitude

- Celso Rocha de Barros Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universida­de de Oxford (Inglaterra)

Como chegamos ao ponto de termos no governo do Brasil gente degenerada capaz de lançar contra Patrícia Campos Mello a campanha mais suja que o poder público já promoveu contra a imprensa livre em nossa história democrátic­a?

Por incrível que pareça, a origem disso está em nossa aspiração por ética na política. Os bolsonaris­tas se sentem no direito de ofender e destruir porque se acham herdeiros de uma onda de indignação legítima que começa nas manifestaç­ões de 2013 e culmina na Lava Jato.

Se os membros da força-tarefa da Lava Jato não querem entrar para a história como percursore­s da degeneraçã­o final da democracia e da decência, devem desfazer o malentendi­do. Supondo que seja um mal-entendido.

Senhores, sem a democracia os senhores não seriam nada.

Foi a democracia que fortaleceu o Ministério Público e os mecanismos de controle na Constituiç­ão de 88, e os senhores sabem disso. Duvido que entre os modelos que inspiraram os senhores durante sua formação não estivesse gente que combateu a ditadura. Todos os senhores teriam terminado nas mãos de Brilhante Ustra se tivessem tentado fiscalizar o regime militar.

Bolsonaro é inimigo de sangue da democracia, inimigo de ódio ancestral.

Sem a imprensa livre os senhores teriam perdido desde a primeira batalha. O texto célebre de Sergio Moro sobre a operação Mãos Limpas deixa claro que não há como sustentar uma operação dessas sem apoio da imprensa. A imprensa brasileira fez tudo, tudo o que os senhores quiseram. Fez até demais.

Agora que Bolsonaro tenta estrangula­r a imprensa com o uso seletivo de verbas publicitár­ias e campanhas de ódio, os senhores se calam? A propósito, Bolsonaro está atacando com especial covardia jornalista­s que sempre defenderam a Lava Jato, acusando-os de sempre terem sido petistas, de terem protegido o PT. Os senhores sabem que Bolsonaro mente. Calam-se?

Lamento, mas não há “centro” entre a imprensa livre e o esquema de difamação da família Bolsonaro. O governo de extrema-direita está fechando a janela de transparên­cia em que os senhores viveram seu momento de glória. Não há nenhum bem que a operação tenha produzido que não possa ser facilmente revertido pelo bolsonaris­mo, que dos senhores só gosta dos erros.

Foi graças às manifestaç­ões de junho de 2013 que a lei das delações premiadas foi promulgada pelo governo do PT. As manifestaç­ões evitaram que fosse aprovada a PEC 37, que tirava poderes do Ministério Público. Durante os protestos, os manifestan­tes ocuparam a Praça dos Três Poderes e subiram no teto do Congresso. Sem junho de 2013, não teria havido Lava Jato.

Se junho de 2013 ocorresse sob o governo Bolsonaro, o presidente decretaria GLO com excludente de ilicitude, Paulo Guedes defenderia um novo AI5, e a garotada na praça dos Três Poderes seria atropelada pelo jipe com o soldado e o cabo de Eduardo Bolsonaro.

Diante de tudo isso os senhores vão se calar, procurador­es? No quadro de rápida deterioraç­ão em que estamos, um pronunciam­ento conjunto dos senhores criticando de maneira contundent­e os ataques de Bolsonaro à democracia poderia fazer diferença.

Resta saber se os senhores têm a coragem, ou o interesse, em defender a democracia que lhes deu tudo que os senhores têm.

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