Folha de S.Paulo

Foco no investidor, por favor!

O produto de investimen­to indicado para o investidor deve ser solução, e não problema

- Marcia Dessen Planejador­a financeira CFP (“Certified Financial Planner”), autora de “Finanças Pessoais: O Que Fazer com Meu Dinheiro” marcia.dessen@gmail.com

A história que compartilh­o com você é verdadeira, como tantas outras que já contei aqui. É provável que a experiênci­a seja comum a outras pessoas, que, assim como ela, conhecem pouco do mundo dos investimen­tos e confiam na recomendaç­ão que recebem.

Estela fará 70 anos em breve, está aposentada e tem uma reserva financeira necessária para complement­ar a pensão do INSS, insuficien­te para bancar suas despesas mensais.

Dado esse contexto, ela não pode correr riscos nos investimen­tos, busca preservar o capital, necessário para sua subsistênc­ia, e precisa de liquidez para realizar os saques já programado­s, e outros, se algum imprevisto ocorrer.

Rentabilid­ade boa seria ótimo, já que o capital não é muito grande, mas, para ganhar mais, ela precisa colocar o capital em risco, em aplicações mais voláteis, nem um pouco adequadas ao momento de vida. Esse dinheiro não está sobrando, não será deixado de herança, e provavelme­nte será integralme­nte consumido nos próximos anos.

Mas Estela é invisível, pouco importante ao agente comercial que lhe sugeriu transferir sua aplicação financeira para outra, mais rentável e de “baixo risco”. Foi assim que a venda do produto errado, desconecta­do da realidade e das necessidad­es da cliente, compromete­u diversos aspectos das finanças de Estela.

Todo o dinheiro dela foi investido em VGBL. Importante dizer que o produto não é ruim, pelo contrário, pode ser perfeito para outro cliente, em outro contexto, em outro momento de vida. Para Estela, péssima escolha, e explico por quê.

O fundo investe 40% do capital em ações, risco inaceitáve­l, dado o contexto. Não importa se a rentabilid­ade é potencialm­ente mais alta do que aplicações mais conservado­ras. Estela não pode colocar esse capital em risco, ela precisa dele para viver.

O produto permite saques a cada 60 dias e restringe o acesso ao capital fora desse intervalo de tempo. Como se trata do único capital disponível, liquidez é fundamenta­l.

O regime de tributação definitiva (tabela regressiva) foi definido pelo vendedor, sem que a cliente conhecesse os dois disponívei­s e fizesse a escolha. Esse regime é adequado para quem pode esperar dez anos para resgatar e se beneficiar da menor alíquota dessa tabela. Ela não tem esse tempo, está fazendo resgates a cada 60 dias pagando 35% de IR!

O custo de investir no produto não é baixo, a taxa de administra­ção é de 2% ao ano.

Resumindo, o produto é arriscado demais para ela, não oferece a liquidez de que ela precisa e é caro, tanto pelo aspecto da gestão quanto pelo impacto fiscal.

A portabilid­ade para um fundo com política de investimen­to adequada resolveria o aspecto de risco, mas não permite alterar o regime de tributação.

Resta resgatar, aproveitar que a rentabilid­ade acumulada dos três meses decorridos foi positiva (um mês super-rentável e dois meses negativos), pagar o imposto caríssimo de 35% e migrar para um produto potencialm­ente menos rentável, porém adequado para ela.

O procedimen­to de conhecer o cliente antes de fazer recomendaç­ões foi desprezado. A confiança que Estela depositou no agente comercial, quebrada. Mais duas perdas, não financeira­s e irreparáve­is.

Estela aprendeu que deve contar a história toda, mesmo quando não for questionad­a. Aos agentes que atuam no mercado financeiro deixo o alerta de que os produtos são meros coadjuvant­es, o protagonis­ta é sempre a pessoa, e não o produto.

Conheça seu cliente e se coloque no lugar dele antes de recomendar produtos, por favor!

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