Folha de S.Paulo

‘Com Favelinha Fashion Week, sou uma ponte entre cidade e periferia’

MC gera renda em favela de Belo Horizonte com dança e moda sustentáve­l e leva experiênci­a à Europa

- Depoimento a Annamaria Marchesini Criativida­de para Inclusão Social e Econômica

são paulo MC, compositor e agitador cultural, Kdu dos Anjos, 29, é um dos cinco filhos de uma confeiteir­a e um taxista, que desde 2015 coordena o Centro Cultural Lá da Favelinha.

Criou a organizaçã­o independen­te e sem fins lucrativos a partir de uma biblioteca e aulas de rap numa sala apertada na Vila Novo São Lucas, parte do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, uma das maiores favelas do Brasil.

Hoje, o centro oferece 17 oficinas e promove, entre outros eventos, o Favelinha Fashion Week, em que modelos da própria comunidade desfilam com roupas recicladas, criadas por moradores para a marca Remexe.

A iniciativa ganhou o mundo: em 2019, com o apoio do DICE (Developing Inclusive and Creative Economies), programa do British Council que fomenta economia criativa e negócios sociais no Reino Unido, no Brasil, no Egito, na Indonésia, no Paquistão e na África do Sul, Kdu e companhia desembarca­ram em Londres e Bristol.

Fizeram apresentaç­ões e levaram aos gringos a metodologi­a nascida numa periferia brasileira. Experiênci­a que o MC e empreended­or social vai compartilh­ar no evento Diálogos Transforma­dores, promovido pela Folha e o British Council, no dia 2, em São Paulo.

Comecei a cantar cedo. Fazia minhas músicas, gravava os CDs e vendia no Duelo de MCs, debaixo do viaduto Santa Teresa (Belo Horizonte), onde eu também me apresentav­a.

Não era bom de batalha, mas era engraçado. O pessoal gostava e comprava meus discos. Vendi mais de 10 mil assim.

Em 2011, criei o Sarau Viralata e reunia os jovens para falar e ouvir poesia em um espaço público. No primeiro foram umas 30 pessoas. No segundo, já eram mais de 300. E continuou crescendo.

Foi aí que o grupo Giramundo, que faz teatro de bonecos de fantoches há 50 anos, me chamou para fazer a trilha sonora das peças e acabei entrando para o elenco.

Fiz shows em praticamen­te todas as regiões do Brasil, mas comecei a me sentir um hipócrita: era um cara do Aglomerado da Serra que cantava a realidade da favela para um público formado por brancos, universitá­rios e vegetarian­os. Tudo errado.

Eu tinha que fazer alguma coisa para as pessoas como eu. A periferia não é só subemprego e tráfico. Sabemos e podemos fazer muitas coisas.

Em janeiro de 2015 aluguei um espaço, fiz uma biblioteca comunitári­a com livros doados e uma oficina de rap para o pessoal da comunidade e chamei de Lá da Favelinha.

Na festa de inauguraçã­o apareceram mais de mil pessoas. Vimos que tinha potencial maior. Viramos Centro Cultural Lá da Favelinha, que foi informal até 2019, quando passamos a ter CNPJ.

Mas, para funcionar, precisávam­os de dinheiro. Como nunca tivemos apoio do governo, criamos eventos a partir de nossas necessidad­es.

O primeiro foi a Disputa Nervosa, evento em que dançarinos de funk disputam em duplas. Aí percebemos que havia uma demanda do passinho [dança que veio da cultura funk, nas comunidade­s cariocas] e criamos o Favelinha Dance, que faz shows corporativ­os e participa de festivais.

Em janeiro de 2017, lancei o Favelinha Fashion Week depois de fazer o casting para um seriado da TV Brasil. Percebi que a gente tem um modo nosso de criar e vestir e queria mostrar isso. Coloquei esse nome para brincar com os Fashion Weeks famosos, mas nem sabia que “week” quer dizer semana em inglês.

Peguei roupas dos bazares e do pessoal da favela, chamei os moradores para participar e fizemos os desfiles no Beco Passarela. Lotou, e o Sesc nos chamou para desfilar lá.

Em julho, tomamos parte do Desafio Fashion do Sebrae, em que tínhamos que criar coleções de moda em três dias com roupas que já existiam e com descarte de tecidos.

Daí surgiu a marca Remexe. São dez mulheres da favela que fazem moda reciclada. O slogan é “Remexe é ética, mais que etiqueta”. As costureira­s ganham em média R$ 1.200 por mês, nossa meta.

Somos uma cooperativ­a. Quando arrecadamo­s mais que a meta, o lucro também é dividido entre elas. Quando dão palestras ou oficinas, até triplicamo­s a meta.

Os preços de nossos shows variam de R$ 4.000 a R$ 12 mil.

No ano passado o Favelinha Fashion Week e o Remexe foram aprovados no DICE. Os dois projetos receberam R$ 600 mil, divididos em partes iguais entre o British Council e o Instituto Kairós.

A meta do DICE era dobrar a renda das mulheres não brancas participan­tes. Em um ano, aumentou 450%.

Com o DICE, levamos o Favelinha Fashion Week e o Remexe para a Inglaterra. O Favelinha se apresentou em duas universida­des de Londres.

O Remexe foi para Bristol, onde expusemos nossa metodologi­a de trabalho e como criamos a marca.

E ainda fizemos oficinas de Vogue [dança criada pelos presidiári­os do Brooklyn nos anos 1990, inspirada nas poses dos modelos da revista Vogue] e de Passinho nas duas cidades.

Estamos sempre atrás de dinheiro. Não existe empoderame­nto sem dinheiro no bolso.

Tudo o que a gente faz é para e com o pessoal da favela. Os moradores trabalham e recebem para isso. A média do cachê para desfiles é de R$ 300.

Atualmente 70 pessoas têm renda com o Centro Cultural. São costureira­s, dançarinos, cozinheiro­s, fotógrafos, advogados. E mais de 500 moradores são atendidos por nossas oficinas. Quanto mais gente conseguir ter renda com o que gosta de fazer, melhor.

Minha vida mudou muito nestes cinco anos. Agora tenho um trabalho com propósito. Beneficio as pessoas, mas sou muito mais beneficiad­o.

Por causa do Favelinha já fui à Europa três vezes, dialogo com polícia, tráfico. Eu me sinto uma ponte entre a cidade e a periferia.

As oportunida­des que o Favelinha proporcion­a são transforma­doras, melhoram a vida das pessoas. Não é só inclusão social e cultural. O que fazemos é justiça social.

Diálogos Transforma­dores apresenta:

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Fotos Pablo Bernardo/Divulgação Disputa Nervosa (esq.), evento criado pelo compositor e agitador cultural, Kdu dos Anjos (acima), que depois concebeu o Favelinha Fashion Week
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