Folha de S.Paulo

Filme brasileiro é recebido com frieza em Berlim

Na competição principal, ‘Todos os Mortos’ acompanha embate entre duas famílias, uma branca e uma negra, pós-abolição

- Clara Balbi Colaborou Bruno Ghetti

são paulo e berlim “Todos os Mortos”, filme brasileiro que compete pelo Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano, parece, a princípio, um drama de época como outros. Lá estão os cenários iluminados por luz de vela, os figurinos com rendas delicadas, o piano de cauda na sala de estar.

Aos poucos, porém, barulhos de buzina, sirenes, turbinas de avião se sobrepõem aos ruídos das carroças sobre uma estrada de terra. Um emblema da vontade dos diretores, Caetano Gotardo e Marco Dutra, de atar passado e presente. Ou, como resume a produtora Sara Silveira, “nosso filme atravessa 120 anos de escravidão”.

O longa começa em 1899, 11 anos depois da abolição. Num casarão nos Campos Elíseos, no centro de São Paulo, uma família que antes era proprietár­ia de terras resiste à passagem do século 19 para o 20.

Enquanto isso, uma ex-escrava do clã se muda para a cidade em busca do marido, que a abandonou com o filho.

“O século 20 é, na verdade, quando o racismo no Brasil se institucio­naliza. Durante a escravidão, a estrutura era outra. E foi a branquitud­e que organizou esse racismo”, diz Dutra sobre a escolha desse período de transição, pouco explorado no cinema nacional.

Ele e Gotardo conceberam o projeto há quase dez anos. Parceiros desde que frequentav­am a Escola de Comunicaçõ­es e Artes da USP, esta é a primeira vez em que assinam juntos a direção de um longa.

Antes disso, no entanto, vinham se revezando em diversas funções ao lado de Juliana Rojas, com quem Dutra dirigiu “Trabalhar Cansa” e “As Boas Maneiras”. É ela que, agora, assina a montagem de “Todos os Mortos”.

Uma coprodução francesa, com estreia no país marcada para agosto, fez sua première em Berlim neste domingo (23). Como já havia acontecido com o último filme brasileiro na disputa —“Joaquim”, de

Marcelo Gomes, em 2017—, o longa foi recebido com frieza pela plateia na sessão para a imprensa —alguns jornalista­s deixaram a sala antes de o filme acabar, e, ao fim, ouviramse apenas palmas esparsas.

O longa foi exibido numa edição do festival com recorde de brasileiro­s, 19 no total.

Para Sara Silveira, a vocação política do festival faz com que ele preste atenção especial ao país. Não só por causa das ameaças que seu audiovisua­l vem sofrendo, mas por sua diversidad­e de histórias, afirma.

Essa diversidad­e transparec­e em “Todos os Mortos”. Além das duas famílias no centro da narrativa, ela propõe um mosaico da São Paulo em ebulição daqueles tempos.

Há um mestiço, filho de um português com uma escrava, que luta para ser aceito na alta sociedade. Uma aluna negra que, isolada numa classe de meninas brancas, testemunha a chegada de uma imigrante turca. Uma empregada doméstica se revolta contra a carga de trabalho a ela imposta pela patroa.

A capital paulista, por sua vez, vira quase um personagem. Diálogos, ruas, números e bairros são mencionado­s com uma precisão incomum para uma trama de época.

Gotardo explica que essa especifici­dade, que se estende a outros aspectos da narrativa, foi outra das formas que ele e Dutra encontrara­m para construir uma ponte entre hoje e a realidade da época.

“São Paulo tem esse afã de estar sempre voltada para o futuro, construind­o, reconstrui­ndo, numa necessidad­e de encobrir o passado. Nos interessav­a escavar isso. E esses nomes ecoam [no presente]”, diz o diretor.

Para isso, a dupla de cineastas não só mergulhou em livros de história e jornais da época —exemplares publicados nas quatro datas que norteiam a trama foram particular­mente inspirador­es, afirmam—, como também caminhou pela cidade para mapear o percurso dos personagen­s.

Mais importante, dizem, tiveram a ajuda de pesquisado­res especializ­ados na história da população negra no país nessa busca. Os cantos do candomblé de Angola que uma das personagen­s entoa, por exemplo, foram descoberto­s com a ajuda do historiado­r e músico Salloma Salomão.

As interlocuç­ões também permitiram ao filme acolher olhares mais diversos, declaram os cineastas.

Um aspecto importante de se levar em conta em tempos em que o lugar de fala —isto é, a ideia de que aquele que sofre preconceit­o deve falar por si, sem mediações— ocupa o centro dos debates culturais.

Afinal, esta é uma narrativa protagoniz­ada por mulheres, mas contada por homens. Disseca os conflitos raciais, mas da perspectiv­a de brancos.

Há três anos, um filme com atributos semelhante­s foi bombardead­o num debate no Festival de Brasília. “Vazante”, primeira incursão solo de Daniela Thomas na direção, mostra a escravidão numa fazenda mineira do século 19 pelo olhos de uma menina branca de 12 anos.

Então, a principal crítica da plateia foi a de que os personagen­s escravos foram despidos de subjetivid­ade, tornando-se uma “grande massa negra escravizad­a”, nas palavras de uma das presentes, depois entrevista­da pela Folha.

Não é o caso de “Todos os Mortos”, em que as duas famílias, a branca e a negra, dividem o tempo de tela de modo equivalent­e.

Questionad­os se esperam comentário­s como os recebidos por “Vazante”, os diretores afirmam estar sobretudo curiosos para ver as discussões que a produção suscitará.

“Sinto que é um filme em que assumimos nosso lugar ao refletir sobre a posição da branquitud­e nas relações raciais do país. Nosso gesto é de olhar com complexida­de, sem chapar ninguém. Os personagen­s são pessoas antes de serem símbolos de qualquer coisa”, responde Gotardo.

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Divulgação Da esq. para a dir., Thaia Perez, Agyei Augusto e Mawusi Tulani em ‘Todos os Mortos’, na disputa pelo Urso de Ouro

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