Folha de S.Paulo

Longa com meninas skatistas e politizada­s também vai à mostra

- CB

A protagonis­ta de “Meu Nome É Bagdá”, filme

brasileiro que estreia nesta terça (25) na mostra Generation, no Festival de Berlim, passa boa parte da trama sendo confundida com um menino. De cabelo “joãozinho”, tênis surrado e skate debaixo do braço, a adolescent­e é a única menina numa gangue de moleques.

Mesmo assim, é estranho pensar que ela foi um menino em sua primeira encarnação, um roteiro de 2009 inspirado no livro “Bagdá, o Skatista”, de Toni Brandão. Afinal, seus questionam­entos são profundame­nte femininos. O que é ser uma mulher? É parecer uma delas? Fazer coisas de menina?

São interrogaç­ões que pairam no ar nas brincadeir­as de Bagdá com as irmãs e a mãe, uma manicure vivida pela cantora Karina Buhr. E que se intensific­am na pista de skate do bairro, onde os amigos da personagem, com os hormônios em ebulição, parecem não saber bem como lidar com ela.

“Não sei se teria feito esse filme há cinco ou dez anos”, conta a diretora Caru Alves de Souza. Primeiro, explica, porque ele acompanhou o amadurecim­ento das discussões sobre gênero e raça que hoje estão na ordem do dia. Segundo, porque ela não se lembra de ver tantas mulheres andando de skate naquela época. “Só tem um coletivo de meninas tão forte em cena porque eu as conheci. Muitas delas estão no filme, inclusive.”

É o caso da própria Bagdá, interpreta­da pela skatista Grace Orsato. Ela, assim como a maioria dos jovens do longa, foi descoberta numa pista em São Paulo.

Nenhum dos atores leu o roteiro, conta Souza. Para manter a espontanei­dade dos diálogos, os textos eram reconstruí­dos nos ensaios —a diretora diz ter usado uma estratégia parecida numa cena de

“De Menor”, sua primeira ficção, de 2013.

Depois, nas filmagens, o elenco ficou livre para perambular pelos cenários, enquanto uma câmera na mão acompanhav­a seus movimentos.

Uma decisão não só estética, mas política, diz Souza. “Como mulher, eu sei o quanto a sociedade está o tempo todo me dizendo o que fazer, como me movimentar. E nunca é uma construção da qual eu participo”, afirma a diretora.

“É claro que algum tipo de construção teve, mas ela foi muito conjunta. Queria respeitar a organicida­de desses corpos de mulheres, negros e trans, disciplina­dos pela sociedade à sua revelia.”

Não é o único elemento do filme a chamar atenção para essasvozes, emgeralàma­rgem da sociedade. Uma das sequências mais divertidas do longa mostra um delírio em que Bagdá, com uma juba de leão, dá uma surra nos homens que discrimina­m seus amigos, um deles gay, a outra trans.

Em outro momento, a mãe da personagem expulsa do bar dois velhotes que fazem piadas misóginas. E muitos dos debates entre Bagdá e as amigas que ela faz ao longo da trama desembocam em reclamaçõe­s sobre a falta de mulheres na cena do skate.

Questionad­a se cenas como essas nasceram de uma vontade de enunciar pautas feministas de forma explícita, pedagógica, Souza responde que nunca teve essa intenção. Ela diz que os desabafos vieram das próprias atrizes.

“Eu as orientava a falar tudo o que quisessem em cena. E elas têm um discurso politizado, que é autêntico delas e que eu quis aproveitar. Tem muito a ver com a juventude hoje.”

Um comportame­nto que, em última instância, também traz esperanças de dias melhores, declara a diretora. Afinal, quando ela era criança, nos anos 1980, seria impensável uma menina invadir uma pista de skate, diz.

“Apesar de estarmos numa fase tenebrosa no Brasil, acho que é impossível voltarmos atrás depois de tantas tomadas de consciênci­a”, afirma Souza. “O que é ruim é não podermos ir em frente. Estávamos avançando em tantas questões e de repente parou tudo.”

Souza leva seu filme a uma edição da Berlinale recordista em participan­tes nacionais.

Nenhum deles teve apoio da Ancine para viajar, pela primeira vez desde sua fundação. Em setembro passado, a agência suspendeu seu programa de apoio à participaç­ão em festivais internacio­nais, que cobria custos de passagens aéreas, confecção de cópias digitais, frete das cópias etc.

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