Folha de S.Paulo

Cineasta mulher assume dianteira em Berlim com filme de faroeste

Em ritmo lento, ‘First Cow’ narra uma amizade entre americano e chinês no noroeste dos EUA, no século 19

- Bruno Ghetti

A americana Kelly Reichardt saiu na dianteira na primeira rodada da briga pelo Urso de Ouro, no Festival de Berlim. Foi bastante aplaudida por seu “First Cow”, espécie de western contemplat­ivo sobre a amizade entre um americano e um chinês, no noroeste americano, no século 19.

O filme já havia sido exibido no Festival de Telluride (EUA) do ano passado, mas foi recebido em Berlim no sábado (22) como novidade. É um retorno à mesma época e local do longa que lançou Reichardt, “O Atalho” (2010).

E também uma volta ao mesmo tipo de narrativa morosa, sem nenhuma pressa, para analisar relações humanas —agora em uma agridoce trama sobre dois homens muito diferentes que se unem em um negócio inusitado (a venda de biscoitos) para sobreviver em uma terra inóspita.

“[A trama] Pareceu-me, de certa forma, com uma história de imigração, com personagen­s tentando se encaixar”, disse Reichardt na conversa com a imprensa. E essa tentativa de encaixe, segundo o filme, só é possível quando há a união entre os dois desvalidos —caso do americano, que largou o pouco que tinha na costa leste atrás de ouro, e do chinês, que além de tudo ainda precisa lidar com o racismo.

É um filme por vezes bem cansativo, mas a diretora acerta ao optar pelo ritmo quase dormente. Alguma coisa acontece nos tempos mortos de modo que o espectador tenha uma compreensã­o mais profunda e uma resposta emocional mais intensa ao que a câmera apresenta. É uma diretora que sabe o que faz.

Já o veterano francês Philippe Garrel teve uma recepção menos calorosa com “Le Sel des Larmes”, melodrama sobre relações amorosas que o diretor mais uma vez filma em preto e branco. Acompanha um rapaz do interior que vai a Paris e conhece uma garota em um ponto de ônibus. Logo na primeira troca de olhares surge um forte clima de flerte.

Existe uma delicadeza adoravelme­nte antiquada na maneira como Garrel apresenta esse primeiro encontro, que se torna uma pequena e rara história romântica praticamen­te impensável em um mundo acelerado como o de hoje. O casal se aproxima aos poucos e evita se beijar nos lábios por um bom tempo.

Nas mãos de cineasta menor, as cenas poderiam soar lastimavel­mente assexuadas ou intolerave­lmente cafonas, mas Garrel tem tal sabedoria no manejo dos elementos às suas mãos (música, atuações, montagem) que consegue tornar tudo extremamen­te excitante, sem perder a ternura.

Mas, em seguida, o filme toma novos rumos, e o rapaz se revela um bocado menos encantador que no começo. O longa torna-se um painel sobre as relações afetivo-sexuais de um francês, branco e heterossex­ual, na mesma tradição tão explorada pelo próprio Garrel e cineastas conterrâne­os (sobretudo Jacques Rivette).

“Quando falamos da juventude, é da nossa juventude que estamos falando”, disse o cineasta, hoje na casa dos 70, à imprensa. De fato, o filme é obra de um homem falando com conhecimen­to de causa, mas o problema é que ser jovem nos anos 1960 não era o mesmo que em 2020. E o mundo atual deu nova régua para avaliar o comportame­nto desses mesmos rapazes franceses, brancos e heterossex­uais: muita atitude antigament­e tida por “charmosa”, hoje se tornou inaceitáve­l. A condescend­ência do diretor com o protagonis­ta mina o filme.

“El Prófugo”, da argentina Natalia Meta, também não empolgou a Berlinale. É um malfadado exercício de cinema de gênero com pretensões feministas sobre uma mulher que começa a ter alucinaçõe­s sexuais, sobretudo após a misteriosa morte do namorado. A protagonis­ta é a excelente Érica Rivas (a noiva de “Relatos Selvagens”), mas o filme é por demais desnortead­o para que ela consiga segurar sozinha.

Já o ator italiano Elio Germano supera qualquer deficiênci­a de “Volevo Nasconderm­i”, de Giorgio Diritti. Tematuação primorosa como o pintor Antonio Ligabue, expoente da arte naïf no século 20, com sérios problemas psíquicos e de saúde —vai ser difícil alguém tirar dele o Urso de melhor ator.

Diritti usa o personagem para mostrar o processo de aburguesam­ento pelo qual uma pessoa passa quando tem acesso a dinheiro. No caso de Antonio, que era em tudo um pária, foi a partir de suas conquistas materiais que ele viu a chance de ser um homem como os outros. Perdeu-se na própria exaltação econômica e morreu na miséria. É um belo filme, mas que terá o azar (ou seria sorte?) de ser lembrado para sempre pela performanc­e de Germano, sobretudo.

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Divulgação Cena do filme ‘First Cow’, dirigido por Kelly Reichardt

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