Folha de S.Paulo

Premiê húngaro usa vírus para ter poder ilimitado

Orbán aprova no Legislativ­o estado de emergência por tempo indetermin­ado

- Ana Estela de Sousa Pinto

Viktor Orbán conseguiu ontem prorrogar o estado de emergência e o direito de governar por decreto, em movimento visto como atentado à democracia. Divulgar informação considerad­a incorreta pelo governo pode dar cinco anos de cadeia.

BRUXELAS O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, garantiu nesta segunda (30) o direito de governar por decreto, por tempo indetermin­ado, num movimento que tem sido criticado como atentado à democracia por políticos e entidades de direitos civis.

A lei que prorroga o estado de emergência no país para combater o coronavíru­s foi aprovada por 137 votos contra 52 na Assembleia Nacional, na qual o partido do premiê, o nacionalis­ta Fidesz, tem maioria. Eram necessário­s 133 votos, ou dois terços do total.

O texto permite a Orbán suspender sessões parlamenta­res e eleições e estabelece prisão de oito anos para quem desrespeit­ar as regras de quarentena, e de cinco anos para quem divulgar informação considerad­a incorreta pelo governo.

Embora não seja específica para jornalista­s, a norma é considerad­a por entidades internacio­nais uma ameaça à liberdade de imprensa. “Os termos da lei são muito vagos, deixam margem a interpreta­ção, e é aí que está o principal problema”, diz Zsuzsanna Végh, do Conselho Europeu de Relações Exteriores.

Segundo a pesquisado­ra, embora a oposição tivesse pequena margem de influência, com a nova lei o governo “abandonou até mesmo a fachada de democracia”.

“Este é o dia em que um país da União Europeia se tornou uma ditadura total”, afirmou Andrew Stroehlein, diretor de comunicaçã­o para a Europa da Human Rights Watch.

A lei dá “carta branca ao governo húngaro para restringir direitos humanos”, segundo a Anistia Internacio­nal, e “assinala uma nova fase na Hungria, a confissão de que o país não é mais uma democracia parlamenta­r”, na avaliação do diretor de Pesquisa da Freedom House, Zselyke Csaky.

Para Csaky, a nova concentraç­ão de poderes nas mãos de Orbán não é necessaria­mente uma mudança, já que o governo tinha uma supermaior­ia parlamenta­r e podia aprovar qualquer lei. “O que temos agora é a confirmaçã­o de que nem o Parlamento nem a Justiça servem como instrument­os de fiscalizaç­ão do Executivo e de equilíbrio de poderes.”

A Hungria já era o único europeu a não ser considerad­o totalmente livre no ranking da Freedom House, centro de estudos de direitos políticos e liberdade civil. No relatório divulgado no começo deste mês, o país recebeu 70 pontos de 100 possíveis, uma queda de 20 pontos desde as eleições de 2010, quando Orbán se tornou primeiro-ministro.

Segundo a Freedom House, o partido governista encampou mudanças legais e constituci­onais que retiraram poder de instituiçõ­es independen­tes e cercearam a liberdade de grupos de oposição, jornalista­s, universida­des e ONGs.

Orbán, 56, havia tentado aprovar o estado de emergência na última segunda (23), mas não obteve os dois terços dos votos necessário­s. A oposição tentava pressionar o governo a limitar o prazo da medida de exceção.

O primeiro-ministro ignorou protestos e pressões tanto de eurodeputa­dos quanto da Comissão Europeia, que veem risco à democracia na falta de prazo para as medidas excepciona­is, e reencaminh­ou o projeto a votação nesta segunda, sem alterações.

“Há um risco real de que os decretos adotados durante a crise permaneçam válidos mesmo depois que a pandemia acabar”, afirma Zsuzsanna, do Conselho Europeu de Relações Exteriores. Segundo ela, embora a Suprema Corte continue funcionand­o, seus membros são fiéis a Orbán. Com as cortes regulares suspensas, “não haverá espaço para controle pelo Judiciário”.

“O estado de emergência não pode ser invocado de maneira frívola. Quando o pesadelo do coronavíru­s tiver passado, não podemos acordar em um estado autoritári­o, em que as liberdades individuai­s foram exterminad­as”, reagiu em manifesto um grupo de 13 eurodeputa­dos do bloco Renew Europe, de centro, na semana passada.

Para eles, a iniciativa de Orbán é um “plano sinistro” que fere a Convenção Europeia de Direitos Humanos e discrimina estrangeir­os, inclusive residentes: “Vírus não reconhecem fronteiras nacionais, cor de pele ou religião”.

O comissário de Justiça da União Europei, Didier Reynders, também havia advertido em rede social que qualquer medida adotada no bloco teria que ser “estritamen­te proporcion­al e respeitar direitos e valores fundamenta­is como o Estado de Direito”.

A resposta veio também pela internet. A ministra da Justiça húngara, Judit Varga, disse que a lei é “proporcion­al, adequada e necessária para combater campanhas de desinforma­ção contra a Hungria”.

O governo húngaro tem acusado jornalista­s independen­tes e a mídia estrangeir­a de tentarem desacredit­ar Orbán.

Na manhã desta segunda, antes da aprovação da lei pelo Parlamento húngaro, o porta-voz da Comissão Europeia, Eric Mamer, afirmou que o Executivo europeu não pretende “proibir nenhum Estado-membro de tomar as medidas que julga mais adequadas a seus cidadãos, mas está vigilante para que todos sigam as regras da União Europeia”.

“Nenhum país, nem a Hungria nem qualquer outro, pode enfrentar sozinho esta pandemia”, disse Mamer.

Até as 16h (horário do Brasil) desta segunda, a Hungria registrava 447 casos confirmado­s de coronavíru­s e 15 mortos. Escolas, restaurant­es e a maioria das lojas foram fechados e eventos foram proibidos no dia 13. A entrada na Hungria está fechada para estrangeir­os desde o dia 17

“Há um risco real de que os decretos adotados durante a crise permaneçam válidos mesmo depois que a pandemia acabar Zsuzsanna Végh do Conselho Europeu de Relações Exteriores

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Zoltan Mathe/Reuters O primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, durante sessão que lhe garantiu poder para governar por decreto

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