Folha de S.Paulo

56 anos do golpe civil-militar que nos afeta até hoje

É um Estado que, se não mata, deixa morrer pela negligênci­a

- Eugênia Augusta Gonzaga, Maurice Politi e Rogério Sottili* Procurador­a regional da República Integrante do Núcleo de Preservaçã­o da Memória Política Diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog * Coordenado­res da “2ª Caminhada Vozes do Silêncio”, que fo

Vivemos uma crise global profunda e sem precedente­s na história recente da humanidade. Uma crise dessa magnitude exige de todos nós reflexões igualmente profundas que possam contribuir para a reformulaç­ão do pacto civilizató­rio e das bases de convivênci­a coletiva. É necessário um direcionam­ento para a construção de uma nova ordem social baseada na coletivida­de. Mais do que nunca, lideranças preparadas para lidar com crises globais são fundamenta­is para propor revisões dos princípios de uma democracia ainda jovem e frágil, para que nossa sociedade caminhe para uma democracia forte e com valores compartilh­ados por todos e para todos.

Subestimar crises sanitárias, somado ao despreparo para enfrentála­s, é caracterís­tico de regimes autoritári­os. É ainda pouco conhecida a epidemia de meningite que acometeu a cidade de São Paulo, entre 1971 e 1975, durante o governo do ditador Emílio Garrastazu Médici. Na época, o aumento vertiginos­o de casos que se alastrou pela cidade e chegou a um índice de letalidade de 14% em 1972, foi acobertado pela censura e pela cumplicida­de de autoridade­s. As principais vítimas foram crianças de até cinco anos, e suspeita-se que a maioria dos mortos pela meningite tenha sido enterrada na vala clandestin­a de Perus —uma chaga aberta na capital paulista.

O Brasil precisa construir sua memória, defender a verdade e promover a reparação e a justiça para o genocídio indígena, os três séculos de escravidão, a ditadura militar e o genocídio das populações negras, pobres e periférica­s.

A violência do Estado produziu e produz vítimas de várias formas. No passado e no presente, torturas, execuções sumárias, desapareci­mentos forçados e tratamento­s cruéis e degradante­s são uma face da moeda, mas não podemos esquecer das vítimas decorrente­s da misoginia, do feminicídi­o, da xenofobia, da perseguiçã­o contra a liberdade de expressão, da transfobia, da intolerânc­ia política oriunda de atos estatais; enfim, das diversas expressões do autoritari­smo.

Também é preciso enfatizar as vítimas de violência social e política do Estado, que agrava a desigualda­de social e enfraquece os serviços públicos relevantes, tal como na saúde e na educação e, principalm­ente, os serviços de proteção social e econômica diante de tal cenário. É um Estado que, se não mata, deixa morrer pela negligênci­a e desmonte das políticas públicas de proteção aos mais vulnerávei­s.

Vivemos em um país marcado por uma cultura histórica e estrutural de violência. No entanto, há vozes que não se calam diante de um silêncio ensurdeced­or. São vozes que as lutas amplificam no tempo e que as memórias impregnam nos corpos.

A nossa sociedade precisa revisitar seu legado autoritári­o e violento para transforma­r as instituiçõ­es em defensores de um Estado democrátic­o de Direito. Ao longo da ditadura militar, de 1964 a 1985, foram milhares de indígenas e camponeses mortos e desapareci­dos; resistente­s políticos presos, torturados, assassinad­os e muitos deles desapareci­dos até o dia de hoje; milhares despejados de suas casas em periferias e favelas; e um sem fim de pessoas perseguida­s, presas, torturadas e mortas em um sistêmico terrorismo de Estado.

A ideologia do negacionis­mo e revisionis­mo pretende impor uma democracia sem o direito à memória, à verdade e à justiça. Assim como sem direitos e sem proteção social e econômica para aqueles que mais necessitam. Saúde, trabalho digno, bem como a proteção ampla e irrestrita do Estado, não deveriam ser privilégio de poucos, mas direito de todos.

Esse é o momento de o Supremo Tribunal Federal pautar na agenda pública o debate e a reinterpre­tação da Lei da Anistia, seguindo os acordos internacio­nais que o Brasil ratificou e assinou de forma voluntária, para que seja possível o julgamento e a responsabi­lização dos que foram os artífices de crimes de lesa humanidade. Sobretudo, para que agentes de Estado não permaneçam na certeza da impunidade.

Mesmo no isolamento social para conter a disseminaç­ão da Covid-19, é imprescind­ível resgatar a memória e continuar lutando para que a violência de Estado não siga se repetindo, aos brados de “ditadura, nunca mais”.

Subestimar crises sanitárias, somado ao despreparo para enfrentála­s, é caracterís­tico de regimes autoritári­os. (...) A ideologia do negacionis­mo e revisionis­mo pretende impor uma democracia sem o direito à memória, à verdade e à justiça

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