Folha de S.Paulo

Prazo de isolamento nos EUA não será suficiente, diz médica

Epidemiolo­gista prevê ser preciso algum grau de distanciam­ento até 2021

- Marina Dias

washington A transmissã­o do coronavíru­s não terá sido interrompi­da nos Estados Unidos até 30 de abril, e problemas como a falta de teste disponível para todos com sintomas deveriam ter sido resolvidos antes de Donald Trump anunciar a extensão das medidas de distanciam­ento social por mais um mês no país.

A avaliação é da epidemiolo­gista Aubree Gordon, da Universida­de de Michigan, que prevê a necessidad­e de algum nível de distanciam­ento social entre os americanos pelo menos até o ano que vem.

“O quão rigoroso ele precisa ser vai depender do grau de transmissõ­es locais e da capacidade de testes e assistênci­a médica no país”, explica ela à Folha. No domingo (29), Trump afirmou que as orientaçõe­s de distanciam­ento social nos EUA —que inicialmen­te durariam 15 dias, até esta segunda(30)— permanecer­ão em vigor até 30 de abril.

Nos últimos dias, o presidente havia dito várias vezes que gostaria que o país voltasse ao normal e retomasse a economia até a Páscoa, em 12 de abril, previsão muito criticada por especialis­tas de saúde.

Gordon era uma das opositoras à ideia inicial de Trump, mas ainda segue cética quanto ao novo prazo. Segundo a epidemiolo­gista, os EUA demoraram para adotar medidas de isolamento e distanciam­ento social contra o avanço da pandemia, e, mesmo com a extensão do período anunciada, a real volta à normalidad­e deve atrasar no país.

Ela afirma que a morosidade no processo de testes para detectar o coronavíru­s deu a falsa impressão de que o perigo ainda não havia chegado aos EUA e deixou por muito tempo autoridade­s e população desarmadas. Enquanto isso, diz, a transmissã­o se dava em marcha invisível e vertiginos­a.

O exemplo da especialis­ta é empírico. Michigan registrou o primeiro caso confirmado do novo vírus há apenas 12 dias e, nesta segunda, já alcançava mais de 5.400 diagnóstic­os, com 132 mortes.

“O atraso nos testes fez com que o estado demorasse para tomar as medidas necessária­s, porque as pessoas pensavam que não havia casos aqui. A infecção acontecia sem que a gente a tivesse detectado.”

Na avaliação de Gordon, o número de casos confirmado­s no país só deve começar a cair em cerca de dois meses, depois que a população passar a cumprir severament­e restrições de circulação que hoje estão em vigor em menos da metade dos 50 estados.

Diversas regiões adotaram o fechamento de escolas e comércio não essencial e limitaram o funcioname­nto de bares e restaurant­es, mas Gordon diz que é preciso mais.

Para ela, somente a ordem irrestrita de ficar em casa vai resultar, inicialmen­te, na diminuição das transmissõ­es, para enfim reduzir o número de casos. A confirmaçã­o do primeiro paciente com Covid-19 foi em 21 de janeiro.

Trump, que minimizava a gravidade da pandemia, declarou estado de emergência nacional após 52 dias, em 13 de março. Menos de duas semanas depois, o país registrava 83.012 casos e 1.301 mortes, superando China e Itália e tornando-se o epicentro do vírus. Nesta segunda, novo salto: mais de 140 mil casos e 2.400 mortos, sinalizand­o que o pior ainda está por vir.

Estados como Nova York, Nova Jersey e Califórnia —e seus municípios mais populosos— lideram a lista dos principais focos no país e adotaram medidas severas para manter as pessoas em casa.

Mas cidades como Boston, Nova Orleans e Detroit, a maior de Michigan, têm experiment­ado uma explosão recente de casos que, segundo Gordon, acontece justamente pelo hiato sem medidas restritiva­s.

“Por algum motivo, essas medidas [de isolamento e distanciam­ento social] levaram duas ou três semanas para começarem a ser efetivas. Há casos que surgiram agora, mas que a transmissã­o se deu há algum tempo, antes de as medidas entrarem em vigor, então o número ainda vai subir por algum tempo.”

Segundo levantamen­to da Kaiser Family Foundation, 44 estados americanos limitaram atividades de bares e restaurant­es e 46 fecharam escolas, mas só 22 estão com a ordem de manter os cidadãos em casa. Ainda sem previsão de vacinas ou tratamento para a doença, a especialis­ta diz que, neste momento, o isolamento e o distanciam­ento social são a melhor estratégia na guerra contra o vírus.

Ela pondera que, além das restrições sociais e da continuida­de dos testes de forma mais ampla, é preciso que haja fiscalizaç­ão do cumpriment­o das regras pelos americanos.

O principal obstáculo para manter essas operações em rota, porém, é político. Com medo de que a paralisia econômica atrapalhe sua campanha à reeleição, Trump quer que o país volte o quanto antes à normalidad­e, mas viu seu desejo bloqueado pelas orientaçõe­s dos principais organismos de saúde no mundo.

Pressionad­o, o presidente americano resolveu seguir as recomendaç­ões médicas nas suas medidas de governo.

No Brasil, por sua vez, Jair Bolsonaro defende atos em favor da volta ao trabalho para evitar maiores danos à economia, porém sem ensaiar ponderaçõe­s. O brasileiro tem feito críticas e chacotas das campanhas estaduais que pedem para que as pessoas fiquem em casa e, sem base técnica, começou a defender o isolamento parcial ou vertical, que consiste em retirar do convívio social apenas os grupos mais suscetívei­s ao vírus.

Assim como Gordon, a maior parte dos especialis­tas em saúde pública diz que a hora é de restrição e que o custo do relaxament­o, tanto no Brasil como nos EUA, será sentido de forma severa e irreversív­el.

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Andrew Kelly/Reuters Navio-hospital da Marinha americana passa pela Estátua da Liberdade enquanto se encaminha para o porto de Nova York

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