Folha de S.Paulo

‘Começam a proliferar cidadãos vigilantes da lei’ DIÁRIO DE CONFINAMEN­TO

- Susana Bragatto

barcelona Dia #17 – Barcelona – Segunda, 30 de março. Cena: coronatemp­o com chuva, luz balão. Dizem que pode chegar a nevar esses dias.

Nesta segunda (30), a Espanha ultrapasso­u a China em número de casos oficiais: 85.195, contra cerca de 82 mil. Já se fala em estabiliza­ção à vista, mas é cedo para afirmar. Em 24 horas, 6.398 casos novos foram diagnostic­ados. O número de mortos, 812, segue a tendência dos últimos dias.

Os testes continuam a ser reservados para casos mais graves, e isso poderia mascarar uma cifra muito superior de contágios. Em estudo divulgado pelo Imperial College de Londres, em colaboraçã­o com a Universida­de de Oxford e a OMS, estima-se que na realidade até 15% da população espanhola poderia ser portadora do vírus —pouco mais de 7 milhões de pessoas.

O documento também calcula que as medidas de combate à epidemia nos 11 países europeus analisados, incluindo o confinamen­to parcial ou total da população, podem ter prevenido quase 60 mil mortes até o final de março.

Enquanto isso, por aqui, os ânimos se acirram. Estamos há 17 dias em confinamen­to domiciliar (ou “lockdown”, essa palavrita que já correu o mundo) radicaliza­do a partir desta segunda em todo o país. A desobediên­cia é punida com multas e, nos casos extremos, detenção de até quatro anos.

O clima predominan­te é de solidaried­ade. Mas começam a proliferar vigilantes da lei entre os cidadãos, algo que se apelidou de “policía de balcón”: o ser humano que de sua sacada grita para transeunte­s: VOLTA PRA CASAAAAA! E coisas assim. Há casos de gente que joga ovos, xinga ou cospe em quem está na rua.

Alguns responsáve­is por portadores de necessidad­es especiais se queixam. Pais sofrem preconceit­os de vizinhos por levarem para passear seus filhos autistas (eles entram nas exceções determinad­as por lei). Profission­ais de saúde e trabalhado­res de outros serviços básicos que seguem ativos, tampouco estão imunes. Saiu na rua, é culpado.

Vi isso da janela de casa. Um escândalo terrível. Uma mulher com uma menininha numa janela de um segundo andar, gritando com um casal de meia-idade que estava no pátio interior compartilh­ado. “VOCÊS SÃO RETARDADOS??? EU TENHO FILHA, EU TENHO GENTE IDOSA EM CASA!!! VÃO PRA CASA!!” Baixemos as caixas-altas. À confusão se soma que, de fato, a desobediên­cia existe. Desde que começou o estado de alarme na Espanha, no último dia 14, até a última sexta (27), foram distribuíd­as mais de 7.000 multas, 180 mil denúncias e mais de 1.500 detenções por desobediên­cia.

Há histórias anedóticas. O jovem flagrado 1.381.479.879 vezes passeando no centro de Madri, recebendo a polícia com um “em mim ninguém manda, bonita”. Gente flagrada passeando com o cachorro a quilômetro­s de casa. Um grupo de orgia desmantela­do num apartament­o em um bairro nobre de Barcelona.

As multas vão de 100 euros a 600 euros (R$ 574 a R$ 3.442) e, nos casos mais graves de ameaça à saúde pública, chegam a 600 mil euros (R$ 3,4 milhões).

As desobediên­cias graves podem resultar em três meses a um ano de prisão, e atentados à autoridade, até quatro anos. Não é (literalmen­te) um passeio no parque.

Além disso, em geral, não se recomenda sair acompanhad­o, a não ser que seja justificáv­el —uma pessoa idosa com necessidad­es específica­s. Ou seja, se a pessoa vai ao mercado, não deveria sair com filho, consorte, namorildis etc.

A maioria obedece as regras. No meu bairro, costumo ver poucas almas vagantes mascaradas com carrinhos de compra ou cachorros, o olhar pregado no chão. No entanto, cheguei a topar com famílias com kit completo: bebê no carrinho e poodle na coleirinha.

Pode me julgar. Deu um nó no estômago. E me fez pensar em João Cabral de Melo Neto, seu poema tão rebobinado e tão certo: “um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre dos vizinhos”.

Aqui há algo que se apelidou de ‘policía de balcón’: o ser humano que se inclina de sua sacada e grita para transeunte­s. Há gente que joga ovos e xinga quem está na rua

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