Folha de S.Paulo

Vírus democratiz­ou poder de matar, diz autor da ‘necropolít­ica’

Filósofo camaronês, Achille Mbembe estuda como governos decidem quem viverá e quem morrerá

- Diogo Bercito

washington O coronavíru­s está mudando a maneira como pensamos sobre o corpo humano. Ele virou uma arma, diz o filósofo camaronês Achille Mbembe. Ao sair de casa, podemos contrair o vírus ou transmiti-lo a outras pessoas.

Já há mais de 775 mil casos confirmado­s e 37 mil mortes no mundo. “Agora todos temos o poder de matar”, afirma Mbembe. “O isolamento é justamente uma forma de regular esse poder.” Aos 62, o filósofo é conhecido por ter cunhado em 2003 o termo “necropolít­ica”. Ele investiga, em sua obra, a maneira como governos decidem quem viverá e quem morrerá —e de que maneira viverão e morrerão.

Ele leciona na Universida­de de Witwatersr­and, em Joanesburg­o. Na sexta (27), a África do Sul registrou as primeiras mortes pela Covid-19. A necropolít­ica aparece, também, no fato de que o vírus não afeta todos de uma maneira igual. Há um debate por priorizar o tratamento de jovens e deixar os mais idosos morrerem.

Há ainda aqueles que, como o presidente Jair Bolsonaro, insistem que a economia não pode parar mesmo se parte da população precisar morrer para garantir essa produtivid­ade. “Alguns vão morrer? Vão morrer. Lamento, essa é a vida”, disse o brasileiro recentemen­te.

“O sistema capitalist­a é baseado na distribuiç­ão desigual da oportunida­de de viver e de morrer”, diz Mbembe. “Essa lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberal­ismo, que deveríamos chamar de necroliber­alismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado.”

Quais são as suas primeiras impressões desta pandemia?

Por enquanto, estou soterrado pela magnitude desta calamidade. O coronavíru­s é realmente uma calamidade e nos traz uma série de questões incômodas. É um vírus que afeta nossa capacidade de respirar…

E obriga governos e hospitais a decidir quem continuará respirando.

Sim. A questão é encontrar uma maneira de garantir que todo indivíduo tenha como respirar. Essa deveria ser a nossa prioridade política. Parece-me, também, que o nosso medo do isolamento está relacionad­o ao nosso temor de confrontar o nosso próprio fim. Esse medo tem a ver com não sermos mais capazes de delegar a nossa morte a outras pessoas.

O isolamento social nos dá, de alguma maneira, um poder sobre a morte?

Sim, um poder relativo. Podemos escapar da morte ou adiá-la. A contenção da morte é o cerne dessas políticas de confinamen­to. Isso é um poder. Mas não é um poder absoluto porque depende das outras pessoas.

Depende de outros também se isolarem?

Sim. Outra coisa é que muitas pessoas que morreram até agora não tiveram tempo de se despedir. Diversas delas foram incinerada­s ou enterradas imediatame­nte.

Como se fossem um lixo de que precisamos nos livrar o mais rapidament­e possível. Essa lógica de descarte ocorre justamente em um momento em que precisamos, ao menos em tese, da nossa comunidade. E não existe comunidade sem podermos dizer adeus àqueles que partiram, organizar funerais. A questão é: como criar comunidade­s em momento de calamidade?

Que sequelas a pandemia deixará na sociedade?

Vai mudar a maneira como lidamos com o nosso corpo. Nosso corpo se tornou uma ameaça para nós mesmos. A segunda consequênc­ia é a transforma­ção da maneira como pensamos no futuro, nossa consciênci­a do tempo. De repente, não sabemos como será o amanhã.

Nosso corpo também é uma ameaça a outros, se não ficarmos em casa.

Sim. Agora todos temos o poder de matar. O poder de matar foi totalmente democratiz­ado. O isolamento é precisamen­te uma forma de regular esse poder.

Outro debate que evoca a necropolít­ica é qual deveria ser a prioridade política neste momento, salvar a economia ou a população. O governo brasileiro tem acenado pela priorizaçã­o da economia.

Essa é a lógica do sacrifício que sempre esteve no coração do neoliberal­ismo, que deveríamos chamar de necroliber­alismo. Esse sistema sempre operou com um aparato de cálculo. A ideia de que alguém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros.

Como na epidemia de HIV, em que governos demoraram a agir porque as vítimas estavam nas margens?

Na teoria, o coronavíru­s pode matar todo o mundo. Todos estão ameaçados. Mas uma coisa é estar confinado num subúrbio, numa segunda residência na área rural. Outra é estar na linha de frente. Trabalhar num centro de saúde sem máscara. Há uma escala em como os riscos são distribuíd­os.

Diversos presidente­s têm se referido ao combate ao coronavíru­s como uma guerra. A escolha de palavra importa, neste momento? O sr. escreveu que a guerra é claro exercício de necropolít­ica.

Existe dificuldad­e em dar um nome ao que está acontecend­o no mundo. Não é apenas um vírus. Não saber o que está por vir é o que faz Estados retomarem as antigas terminolog­ias utilizadas nas guerras. Além disso, as pessoas estão recuando para dentro das fronteiras de seus Estados-nação.

Há um maior nacionalis­mo durante esta pandemia?

Sim. As pessoas estão retornando para o “chez-soi”, como dizem em francês. Para o seu lar. Como se morrer longe de casa fosse a pior coisa que poderia acontecer. Fronteiras estão sendo fechadas. Não estou dizendo que elas deveriam ficar abertas. Mas governos respondem a esta pandemia com gestos nacionalis­tas, com esse imaginário do muro.

Depois desta crise, vamos voltar a como éramos antes?

Da próxima vez, vamos ser golpeados de uma maneira ainda mais forte do que fomos nesta pandemia. A humanidade está em jogo. O que esta pandemia revela, se a levarmos a sério, é que a nossa história aqui na terra não está garantida.

Não há garantia de que vamos estar aqui para sempre. O fato de que é plausível que a vida continue sem a gente é a questão-chave deste século.

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