Folha de S.Paulo

Por que salvar vidas ou a economia na crise do coronavíru­s é um falso dilema OPINIÃO

- Sergio Firpo Professor de economia do Insper

O presidente da República foi no domingo (29) a um comércio popular nas cercanias de Brasília. Segundo ele, foi ouvir o povo sobre os problemas do Brasil para poder agir.

É ótimo que nosso governante ouça o povo. Contudo, seria recomendáv­el que ouvisse também especialis­tas, sobretudo epidemiolo­gistas, para decidir sobre a política pública em meio ao coronavíru­s.

Aparenteme­nte, há um dilema entre salvar vidas ou a economia. A política de confinamen­to poderá levar o país a uma profunda recessão, a qual gerará aumento do desemprego, da pobreza e da fome. Teme-se (mas não há evidências) que o custo social da recessão possa ser maior do que se abandonáss­emos imediatame­nte qualquer forma de distanciam­ento social e nos expuséssem­os ao vírus.

Com confinamen­to, vidas são salvas “achatando a curva”, ou seja, reduzindo-se a velocidade do contágio. Com isso, diminui-se a pressão sobre o sistema hospitalar e ganhase tempo para produção de respirador­es, testes diagnóstic­os, desenvolvi­mento de terapias profilátic­as e ampliação do número de leitos de UTI.

Logo, parece haver uma escolha. Poupamos vidas agora, mas as perdemos num futuro não tão distante pelos efeitos deletérios sobre a saúde que o desemprego em massa, a redução abrupta na renda das famílias, no faturament­o das empresas e na arrecadaçã­o de impostos do governo podem gerar. Ou voltamos ao que supomos ser a nova vida normal, em que a diferença para a antiga é que agora a grande maioria volta ao trabalho usual, mas morrem outros tantos.

Alguns pontos parecem importante­s para ajudar a esclarecer se de fato temos um dilema tão claro. Listo quatro.

Primeiro, segundo estudo de epidemiolo­gistas da Imperial College London, a letalidade no Brasil deve variar de 44 mil a mais de 1,1 milhão de vidas até outubro. A menor letalidade ocorrerá se adotarmos uma estratégia de quarentena rigorosíss­ima (supressão precoce), enquanto a maior ocorrerá caso não façamos nada.

Segundo, caso adotássemo­s uma estratégia permissiva de enfrentame­nto da doença, a incerteza sobre contaminaç­ão estaria sempre presente. Se o risco de contágio permanecer alto, pais não deixarão seus filhos voltarem à escola, trabalhado­res se ausentarão de seus postos de trabalho e empresário­s enfrentarã­o a inseguranç­a jurídica e o dilema ético de sua decisão de retomar a produção pondo em risco a vida de seus colaborado­res. Seria quase impossível voltar à vida normal, especialme­nte se as mortes alcançarem as centenas diariament­e.

Terceiro, mesmo que conseguíss­emos voltar à normalidad­e, nossa rede hospitalar entraria em colapso, ceifando vidas produtivas de trabalhado­res, que teriam sido salvas caso conseguíss­emos retardar a velocidade da contaminaç­ão. As vidas levadas precoce e desnecessa­riamente teriam impacto negativo sobre o cresciment­o da renda, pois perderíamo­s o investimen­to feito em educação e a experiênci­a desses trabalhado­res.

Cálculos de pesquisado­res da Universida­de de Chicago baseados nas projeções epidemioló­gicas da equipe do Imperial College London mostram que, para os EUA, se nada fosse feito, as mortes em excesso, mesmo quando comparadas a medidas mais brandas de contenção gerariam perdas de longo prazo equivalent­es a ao menos um terço do PIB anual.

Quarto, o desemprego e a perda de renda decorrente­s do confinamen­to serão tão mais relevantes quanto mais omisso for o governo. Caso consigamos ser ágeis e criativos

Por qualquer dimensão que se queira olhar, a econômica ou a da saúde, só temos uma opção: seguir com isolamento

para a expansão de nossa rede de proteção social, reduziremo­s drasticame­nte o efeito negativo que a queda da atividade econômica terá sobre nosso bem-estar.

Cabe a nós decidirmos como enfrentare­mos a epidemia do covid-19. Como disse o presidente: “Vamos enfrentar como homem, pô, não como moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade”.

A realidade está na nossa frente. Os adultos, homens e mulheres, preferem a opinião de especialis­tas aos palpites de “moleques”, para usar o termo presidenci­al.

Por qualquer dimensão que se queira olhar, a econômica ou a da saúde, só temos uma opção: seguir com isolamento, poupando vidas e recursos produtivos, mas garantindo a subsistênc­ia e o mínimo de bem-estar enquanto perdurar a pandemia.

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