Por que salvar vidas ou a economia na crise do coronavírus é um falso dilema OPINIÃO
O presidente da República foi no domingo (29) a um comércio popular nas cercanias de Brasília. Segundo ele, foi ouvir o povo sobre os problemas do Brasil para poder agir.
É ótimo que nosso governante ouça o povo. Contudo, seria recomendável que ouvisse também especialistas, sobretudo epidemiologistas, para decidir sobre a política pública em meio ao coronavírus.
Aparentemente, há um dilema entre salvar vidas ou a economia. A política de confinamento poderá levar o país a uma profunda recessão, a qual gerará aumento do desemprego, da pobreza e da fome. Teme-se (mas não há evidências) que o custo social da recessão possa ser maior do que se abandonássemos imediatamente qualquer forma de distanciamento social e nos expuséssemos ao vírus.
Com confinamento, vidas são salvas “achatando a curva”, ou seja, reduzindo-se a velocidade do contágio. Com isso, diminui-se a pressão sobre o sistema hospitalar e ganhase tempo para produção de respiradores, testes diagnósticos, desenvolvimento de terapias profiláticas e ampliação do número de leitos de UTI.
Logo, parece haver uma escolha. Poupamos vidas agora, mas as perdemos num futuro não tão distante pelos efeitos deletérios sobre a saúde que o desemprego em massa, a redução abrupta na renda das famílias, no faturamento das empresas e na arrecadação de impostos do governo podem gerar. Ou voltamos ao que supomos ser a nova vida normal, em que a diferença para a antiga é que agora a grande maioria volta ao trabalho usual, mas morrem outros tantos.
Alguns pontos parecem importantes para ajudar a esclarecer se de fato temos um dilema tão claro. Listo quatro.
Primeiro, segundo estudo de epidemiologistas da Imperial College London, a letalidade no Brasil deve variar de 44 mil a mais de 1,1 milhão de vidas até outubro. A menor letalidade ocorrerá se adotarmos uma estratégia de quarentena rigorosíssima (supressão precoce), enquanto a maior ocorrerá caso não façamos nada.
Segundo, caso adotássemos uma estratégia permissiva de enfrentamento da doença, a incerteza sobre contaminação estaria sempre presente. Se o risco de contágio permanecer alto, pais não deixarão seus filhos voltarem à escola, trabalhadores se ausentarão de seus postos de trabalho e empresários enfrentarão a insegurança jurídica e o dilema ético de sua decisão de retomar a produção pondo em risco a vida de seus colaboradores. Seria quase impossível voltar à vida normal, especialmente se as mortes alcançarem as centenas diariamente.
Terceiro, mesmo que conseguíssemos voltar à normalidade, nossa rede hospitalar entraria em colapso, ceifando vidas produtivas de trabalhadores, que teriam sido salvas caso conseguíssemos retardar a velocidade da contaminação. As vidas levadas precoce e desnecessariamente teriam impacto negativo sobre o crescimento da renda, pois perderíamos o investimento feito em educação e a experiência desses trabalhadores.
Cálculos de pesquisadores da Universidade de Chicago baseados nas projeções epidemiológicas da equipe do Imperial College London mostram que, para os EUA, se nada fosse feito, as mortes em excesso, mesmo quando comparadas a medidas mais brandas de contenção gerariam perdas de longo prazo equivalentes a ao menos um terço do PIB anual.
Quarto, o desemprego e a perda de renda decorrentes do confinamento serão tão mais relevantes quanto mais omisso for o governo. Caso consigamos ser ágeis e criativos
Por qualquer dimensão que se queira olhar, a econômica ou a da saúde, só temos uma opção: seguir com isolamento
para a expansão de nossa rede de proteção social, reduziremos drasticamente o efeito negativo que a queda da atividade econômica terá sobre nosso bem-estar.
Cabe a nós decidirmos como enfrentaremos a epidemia do covid-19. Como disse o presidente: “Vamos enfrentar como homem, pô, não como moleque. Vamos enfrentar o vírus com a realidade”.
A realidade está na nossa frente. Os adultos, homens e mulheres, preferem a opinião de especialistas aos palpites de “moleques”, para usar o termo presidencial.
Por qualquer dimensão que se queira olhar, a econômica ou a da saúde, só temos uma opção: seguir com isolamento, poupando vidas e recursos produtivos, mas garantindo a subsistência e o mínimo de bem-estar enquanto perdurar a pandemia.