Folha de S.Paulo

Mandetta se equilibra entre área técnica e pressão política

Ministro cita riscos à economia, mas dobra a aposta ao defender isolamento

- Natália Cancian e Talita Fernandes

O vírus é extremamen­te duro, e ele derruba o sistema de saúde. Se ele não tem uma letalidade individual elevada, ele tem uma letalidade ao sistema de saúde

11.mar

Todo mundo tem que fazer sua parte [...] Quanto mais rápido tiver transmissã­o, maior vai ser a necessidad­e de determinaç­ão de paralisaçã­o. É ilegal [ir a manifestaç­ão]? Não. Mas a orientação é não. E continua sendo não para todo mundo

15.mar

É bom todo mundo começar a se organizar. Igrejas, por exemplo. Já está na hora de pastores se reunirem e falarem: olha, a maioria das pessoas que vem no culto é idosa. Imagina aqueles lugares fechados socados de gente, permanecen­do uma hora, tem culto de duas horas

15.mar

Claramente no final de abril nosso sistema entra em colapso. Oqueéum colapso? [...] O colapso é quando você pode ter o dinheiro, você pode ter o plano de saúde, pode ter a ordem judicial, mas simplesmen­te não há um sistema para você entrar. É o que está vivenciand­o a Itália

22.mar

Temos que melhorar esse negócio de quarentena, foi precipitad­o, foi desarrumad­o [...] Eu vejo a grande colaboraçã­o da fala do presidente, de chamar a atenção de que é preciso pensar na economia [...] Que as igrejas fiquem abertas, mas não se aglomerem

25.mar

É só pegar as pessoas com mais de 60 anos e cuidar? Como se essas pessoas estivessem dentro de uma cápsula. Essas pessoas moram com vocês, têm netos, têm filhos, trabalham, pegam ônibus, são ambulantes

30.mar

brasília O avanço de casos do novo coronavíru­s e o impacto da crise nos planos do governo vêm levando o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a mudar seu discurso de acordo com o aumento do número de casos no país, as cobranças do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e a pressão de entidades e aliados.

Ainda em janeiro, quando não havia casos confirmado­s no Brasil, o ministro já falava em ter cautela, mas sem pânico. O cenário, restrito à China na época, passou a ser monitorado por meio de um centro de emergência criado pelo Ministério da Saúde.

Mandetta dizia que o país estava preparado e que os dados iniciais apontavam para uma infecção semelhante a uma gripe, mas que precisava de alerta em casos graves.

Aos poucos, com a evolução da doença pelo mundo, Mandetta foi modulando o tom de sua fala; ora elevava a gravidade devido à epidemia ora amenizava-a cada investida do presidente que pretendia minimizar a crise.

Nesta segunda (30), ele posicionou publicamen­te diante da pressão que vem sofrendo de Bolsonaro para flexibiliz­ar o discurso. O presidente insiste na retomada das atividades, enquanto a Saúde vem fazendo orientaçõe­s para desestimul­ar a aglomeraçã­o de pessoas.

“É preciso entender que vamos ter um código de comportame­nto, de distanciam­ento entre pessoas, para que a gente não tenha uma paralisia e morra de paralisia, mas também não tenha um frenesi que cause um megaproble­ma.”

As idas e vindas no discurso indicam não só influência da avaliação técnica da saúde como do cenário político.

Da parte da saúde, a mudança foi visível no último mês. Em entrevista à Folha em fevereiro, após o primeiro caso confirmado, o ministro afirmou que, se o cenário da China se repetisse no

Brasil, com cerca de 50 mil casos em São Paulo, seria “administrá­vel”.

Poucos dias depois, com o aumento vertiginos­o de casos na Itália, a avaliação começou a mudar. Mandetta defendeu que a Organizaçã­o Mundial de Saúde declarasse pandemia em um momento em que a entidade ainda falava apenas em “risco alto a nível internacio­nal”.

Em seguida, em outro sinal mais forte de reconhecim­ento do impacto da doença, passou a dizer que o vírus é “letal” ao sistema de saúde. “Não existe nenhum sistema 100% preparado para ser em massa acionado para testes, diagnóstic­o, internação, isolamento e leitos em CTI.”

O risco de um colapso no sistema de saúde foi citado pelo ministro em reunião com empresário­s. Segundo ele, o Brasil poderia enfrentar a situação ainda em abril.

O aumento no alerta, porém, não foi bem recebido no Palácio do Planalto. Com os holofotes centrados na saúde e com elogios públicos à sua atuação, Mandetta passou a ser alvo de cobranças de Bolsonaro para suavizar o discurso e, num primeiro momento, cedeu.

Em uma ocasião, chegou a falar na necessidad­e de não haver histeria, repetindo palavras de seu chefe. “Não podemos deixar isso se transforma­r em histeria e desespero! Calma, serenidade, prevenção e ações eficazes são armas importante­s para superarmos o coronavíru­s”, escreveu no Twitter.

Também passou a criticar medidas de paralisaçã­o adotadas por governador­es para conter a transmissã­o do vírus e chegou a endossar parte do discurso de Bolsonaro, que defendeu em pronunciam­ento o fim do “contingenc­iamento em massa”.

“Temos que melhorar esse negócio de quarentena, foi precipitad­o, foi desarrumad­o”, disse o ministro. Para ele, alguns governador­es “passaram do ponto”.

Mandetta passou então a ser alvo de críticas até de parte dos médicos. Aliados políticos fizeram um apelo para que o ministro se mantenha firme tanto no cargo quanto na defesa de suas convicções de especialis­ta.

O aconselham­ento surtiu efeito, e desde o último sábado ele mudou o tom de novo, voltando a mostrar apoio a medidas de isolamento adotadas pelos estados.

“Ainda não dá para falar: ‘Libera todo mundo para sair’, porque a gente não está conseguind­o chegar com o equipament­o ‘just in time’ [na hora certa], como a gente precisa”, disse o ministro. “Se sair andando todo mundo de uma vez, vai faltar [atendiment­o] para rico e pobre.”

Também deu recados a apoiadores do Bolsonaro. “Daqui a duas, três semanas, os que falam ‘vamos fazer carreata” serão os mesmos que vão ficar em casa.”

No sábado, o ministro propôs ao presidente um alinhament­o de discurso. A fala foi endossada por outros auxiliares de Bolsonaro, e um acordo foi firmado. Não durou 24 horas. No domingo, o presidente saiu às ruas de Brasília.

Bolsonaro segue insistindo em isolamento apenas dos grupos de risco e fala na retomada do comércio. Mandetta se opôs à ideia nesta segunda-feira (30).

“É só pegar as pessoas com mais de 60 anos e cuidar? Como se essas pessoas estivessem dentro de uma cápsula. Essas pessoas moram com vocês, têm netos, têm filhos, trabalham, pegam ônibus, são ambulantes”, disse.

“Por enquanto mantenham as recomendaç­ões dos estados, porque nesse momento temos muitas fragilidad­es no sistema de saúde.”

Ao mesmo tempo em que reforça as críticas, o ministro tem dado acenos a propostas de Bolsonaro ao afirmar que“a economia é importante para a saúde” e que uma paralisaçã­o total em todo o país seria um “desastre”.

Entre idas e vindas, secretário­s de saúde e especialis­tas têm cobrado que a pasta não altere decisões por pressão política e que o ministério mantenha o tom técnico.

“Quando tem duas autoridade­s falando duas coisas diferentes, isso gera inseguranç­a. Em quem acreditar: no ministério ou no presidente?”, afirmou Alberto Beltrame, presidente do Conass, conselho que reúne secretário­s estaduais de saúde.

“O que assusta neste momento é que parecem dois mundos paralelos. Desde que o presidente negou a gravidade da crise sanitária, há essa falta de sincronia entre o que ele e o Ministério da Saúde dizem”, afirma Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP.

A cobrança também vem de aliados, que sugerem até a saída do ministro caso haja aumento na interferên­cia. Ele nega uma possível saída.

“A partir do momento que o Ministério da Saúde for coagido a mudar a questão técnica, o Mandetta tem que pedir o boné e sair de espinha ereta”, diz o deputado Fábio Trad (PSD-MS), primo do ministro. “Entre a ciência, que hoje é prestigiad­a pelos líderes mundiais, e a credulidad­e do presidente, Mandetta tem que ficar com aquilo que é a formação dele. É preferível sair com as convicções intocadas do que ficar como títere.”

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Pedro Ladeira/Folhapress IMAGENS MOSTRAM DESGASTE DA FISIONOMIA DO MINISTRO DA SAÚDE

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