Nível hard
Com a pandemia do coronavírus, grandes estúdios de game têm lucro, mas os pequenos sofrem com o fechamento das fronteiras
são paulo Um dos efeitos colaterais desta quarentena tem se manifestado por meio de rabiscos toscos, feitos a mouse livre. Quem comete tais obras no estilo Paint Brush objetiva que seus desenhos sejam decifrados pelos seu oponentes.
Uma das sensações deste março pandêmico tem sido a plataforma online “Gartic”, semelhante a um “Imagem & Ação”, só que sem mímica e sem contato físico.
Entre a primeira quinzena do mês até a última semana, a média diária de acessos à versão web Gartic.io pulou de modestos 60 mil para 890 mil. O game, que pode ser jogado em 24 idiomas, observou uma explosão de acessos em lugares como Turquia, Taiwan, Estados Unidos, China, Indonésia, República Tcheca, Arábia Saudita e Alemanha, além do Brasil.
A pandemia tem mantido ocupados os nove funcionários do estúdio Onrizon, de Belo Horizonte, responsável pelo “Gartic”. “A gente está contratando servidor a cada minuto praticamente [para suportar o alto número de acessos]”, conta Helena Pereira, diretora de operações da empresa.
“O lucro aumentou, mas não estamos andando de helicóptero”, diz a diretora ao explicar que, com ou sem Covid-19, a economia já estava capenga e, com isso, há menos gente querendo anunciar na internet —o jogo é gratuito e a fonte de sua receita são as propagandas que habitam a plataforma. O dólar passando dos R$ 5 também não ajuda.
A empresa ainda tem debaixo de suas asas outros hits da quarentena, como o “StopotS”, o “TrucoON” e o “BuracoON”, este último um grande sucesso na Itália.
Mesmo relativamente pequena, a Onrizon é uma empresa já estabelecida do mercado —só o “Gartic” tem 12 anos de existência.
Mas, para estúdios mais recentes, ser otimista pode ser mais difícil. A empresa Infinity Green, de São Paulo, estava pronta para lançar seu game “Psikodelya” para PlayStation e Xbox no fim de abril, data estrategicamente escolhida para não colidir com lançamentos de blockbusters mais peso-pesado —o jogo está disponível no Steam desde agosto do ano passado. Com a pandemia, o lançamento teve de ser adiado para agosto deste ano.
Os downloads do jogo no Steam aumentaram em 25%, de acordo com Tainã Oliveira, desenvolvedor do game, mas o saldo, diz ele, é negativo. Afinal, serão três meses a menos nas vitrines virtuais da Sony e da Microsoft. O material de divulgação, o planejamento de marketing e as demonstrações em eventos, tudo isso foi para a gaveta por ora —e a previsão de receita por vendas nos consoles também.
Por enquanto, o BIG Festival, maior evento de estúdios independentes do Brasil, continua marcado para julho, sem adiamentos.
Já o South by Southwest, emaranhado de festivais de cinema, música e games em Austin, nos Estados Unidos, foi cancelado. Ana Prync, CEO da paulistana Venturion, estava de malas prontas para o Texas e com a agenda cheia de reuniões, mas não foi desta vez. O lançamento do jogo colaborativo em realidade virtual “Laser Storm” seria justamente no festival.
“E é uma pena porque as pessoas só podem jogar se estão juntas no mesmo espaço”, diz Prync, ao explicar a pegada colaborativa do game. De quarentena, a equipe desenvolve uma versão remota do jogo.
Para os que já nadam entre os tubarões —e em águas internacionais— o horizonte é mais positivo. É o caso da recifense Kokku, que presta serviços de arte e programação para grandes desenvolvedoras de games. O estúdio já trabalhou com títulos como o blockbuster “Horizon Zero Dawn”. Atualmente, o diretor-executivo Thiago de Freitas diz que o estúdio está trabalhando com dois títulos do mesmo calibre, mas não pode revelar quais são por motivos de contrato.
Segundo ele, a previsão de faturamento para este ano é maior do que a do ano passado, mesmo com o coronavírus.
“A gente tem planejado cerca de 30 contratações. Neste exato momento eu preciso contratar 12 pessoas”, diz Freitas. E os profissionais altamente qualificados costumam ser disputados entre a meia dúzia de grandes estúdios de games no Brasil, mesmo na conjuntura atual.
Com a quarentena, alguns jogos com os quais a empresa colaborou, como o “Truck Driver”, têm tido uma explosão de downloads e acessos, o que acaba demandando manutenção e atualizações —mas também significa mais dinheiro para a Kokku.
A empresa hoje tem cerca de 50 funcionários na capital pernambucana, além de uma filial na China. Por trabalharem com games de proporções hollywoodianas, os contratos com os peixes grandes costumam incluir cláusulas de confidencialidade.
Com isso, a Kokku não pode contratar freelancers e deve ter uma infraestrutura de controle e segurança que impeça o vazamento de informações sobre os jogos ainda inéditos. Para se ter uma ideia da seriedade disso, nos andares em que ficam os programadores e designers não entram forasteiros e é proibido tirar fotos.
Quando conversou com o repórter, o diretor-executivo tinha acabado de retornar de uma peregrinação pela Europa e iria para os Estados Unidos, jornada esta que teve de ser interrompida com o início do fechamento das fronteiras.
“Ano passado fiquei uns sete meses fora do Brasil, ao todo”, diz Freitas, sobre a sua vida de CEO de empresa de games. A depender da pandemia, seu modus operandi vai ser outro em 2020.
De volta ao Recife e devidamente isolado, Freitas agora teria de se equilibrar entre as medidas de quarentena dos funcionários e as exigências dos acordos com os grandes players —por questões de segurança de informação, alguns desses contratos não permitem home office.
Freitas tenta negociar alternativas com seus contratantes estrangeiros e avalia a viabilidade do trabalho remoto. Para isso acontecer, diz o CEO, teria de ser montada a mesma estrutura de segurança e monitoramento na casa de cada um dos programadores e designers. E isso não sairia barato. “Só um dos equipamentos que estão pedindo custaria US$ 2.746 [R$ 14 mil], e são cinco”, diz.
O CEO reconhece sua posição privilegiada frente à crise do coronavírus. A Kokku tem contratos fechados que preveem faturamento para até o começo do ano de 2022.
“Querendo ou não, a gente já é bem sólido”, ele afirma. “Mas empresas menores, que não têm um fluxo de caixa bom, podem, sim, quebrar.”