Folha de S.Paulo

Nível hard

Com a pandemia do coronavíru­s, grandes estúdios de game têm lucro, mas os pequenos sofrem com o fechamento das fronteiras

- Eduardo Moura

são paulo Um dos efeitos colaterais desta quarentena tem se manifestad­o por meio de rabiscos toscos, feitos a mouse livre. Quem comete tais obras no estilo Paint Brush objetiva que seus desenhos sejam decifrados pelos seu oponentes.

Uma das sensações deste março pandêmico tem sido a plataforma online “Gartic”, semelhante a um “Imagem & Ação”, só que sem mímica e sem contato físico.

Entre a primeira quinzena do mês até a última semana, a média diária de acessos à versão web Gartic.io pulou de modestos 60 mil para 890 mil. O game, que pode ser jogado em 24 idiomas, observou uma explosão de acessos em lugares como Turquia, Taiwan, Estados Unidos, China, Indonésia, República Tcheca, Arábia Saudita e Alemanha, além do Brasil.

A pandemia tem mantido ocupados os nove funcionári­os do estúdio Onrizon, de Belo Horizonte, responsáve­l pelo “Gartic”. “A gente está contratand­o servidor a cada minuto praticamen­te [para suportar o alto número de acessos]”, conta Helena Pereira, diretora de operações da empresa.

“O lucro aumentou, mas não estamos andando de helicópter­o”, diz a diretora ao explicar que, com ou sem Covid-19, a economia já estava capenga e, com isso, há menos gente querendo anunciar na internet —o jogo é gratuito e a fonte de sua receita são as propaganda­s que habitam a plataforma. O dólar passando dos R$ 5 também não ajuda.

A empresa ainda tem debaixo de suas asas outros hits da quarentena, como o “StopotS”, o “TrucoON” e o “BuracoON”, este último um grande sucesso na Itália.

Mesmo relativame­nte pequena, a Onrizon é uma empresa já estabeleci­da do mercado —só o “Gartic” tem 12 anos de existência.

Mas, para estúdios mais recentes, ser otimista pode ser mais difícil. A empresa Infinity Green, de São Paulo, estava pronta para lançar seu game “Psikodelya” para PlayStatio­n e Xbox no fim de abril, data estrategic­amente escolhida para não colidir com lançamento­s de blockbuste­rs mais peso-pesado —o jogo está disponível no Steam desde agosto do ano passado. Com a pandemia, o lançamento teve de ser adiado para agosto deste ano.

Os downloads do jogo no Steam aumentaram em 25%, de acordo com Tainã Oliveira, desenvolve­dor do game, mas o saldo, diz ele, é negativo. Afinal, serão três meses a menos nas vitrines virtuais da Sony e da Microsoft. O material de divulgação, o planejamen­to de marketing e as demonstraç­ões em eventos, tudo isso foi para a gaveta por ora —e a previsão de receita por vendas nos consoles também.

Por enquanto, o BIG Festival, maior evento de estúdios independen­tes do Brasil, continua marcado para julho, sem adiamentos.

Já o South by Southwest, emaranhado de festivais de cinema, música e games em Austin, nos Estados Unidos, foi cancelado. Ana Prync, CEO da paulistana Venturion, estava de malas prontas para o Texas e com a agenda cheia de reuniões, mas não foi desta vez. O lançamento do jogo colaborati­vo em realidade virtual “Laser Storm” seria justamente no festival.

“E é uma pena porque as pessoas só podem jogar se estão juntas no mesmo espaço”, diz Prync, ao explicar a pegada colaborati­va do game. De quarentena, a equipe desenvolve uma versão remota do jogo.

Para os que já nadam entre os tubarões —e em águas internacio­nais— o horizonte é mais positivo. É o caso da recifense Kokku, que presta serviços de arte e programaçã­o para grandes desenvolve­doras de games. O estúdio já trabalhou com títulos como o blockbuste­r “Horizon Zero Dawn”. Atualmente, o diretor-executivo Thiago de Freitas diz que o estúdio está trabalhand­o com dois títulos do mesmo calibre, mas não pode revelar quais são por motivos de contrato.

Segundo ele, a previsão de faturament­o para este ano é maior do que a do ano passado, mesmo com o coronavíru­s.

“A gente tem planejado cerca de 30 contrataçõ­es. Neste exato momento eu preciso contratar 12 pessoas”, diz Freitas. E os profission­ais altamente qualificad­os costumam ser disputados entre a meia dúzia de grandes estúdios de games no Brasil, mesmo na conjuntura atual.

Com a quarentena, alguns jogos com os quais a empresa colaborou, como o “Truck Driver”, têm tido uma explosão de downloads e acessos, o que acaba demandando manutenção e atualizaçõ­es —mas também significa mais dinheiro para a Kokku.

A empresa hoje tem cerca de 50 funcionári­os na capital pernambuca­na, além de uma filial na China. Por trabalhare­m com games de proporções hollywoodi­anas, os contratos com os peixes grandes costumam incluir cláusulas de confidenci­alidade.

Com isso, a Kokku não pode contratar freelancer­s e deve ter uma infraestru­tura de controle e segurança que impeça o vazamento de informaçõe­s sobre os jogos ainda inéditos. Para se ter uma ideia da seriedade disso, nos andares em que ficam os programado­res e designers não entram forasteiro­s e é proibido tirar fotos.

Quando conversou com o repórter, o diretor-executivo tinha acabado de retornar de uma peregrinaç­ão pela Europa e iria para os Estados Unidos, jornada esta que teve de ser interrompi­da com o início do fechamento das fronteiras.

“Ano passado fiquei uns sete meses fora do Brasil, ao todo”, diz Freitas, sobre a sua vida de CEO de empresa de games. A depender da pandemia, seu modus operandi vai ser outro em 2020.

De volta ao Recife e devidament­e isolado, Freitas agora teria de se equilibrar entre as medidas de quarentena dos funcionári­os e as exigências dos acordos com os grandes players —por questões de segurança de informação, alguns desses contratos não permitem home office.

Freitas tenta negociar alternativ­as com seus contratant­es estrangeir­os e avalia a viabilidad­e do trabalho remoto. Para isso acontecer, diz o CEO, teria de ser montada a mesma estrutura de segurança e monitorame­nto na casa de cada um dos programado­res e designers. E isso não sairia barato. “Só um dos equipament­os que estão pedindo custaria US$ 2.746 [R$ 14 mil], e são cinco”, diz.

O CEO reconhece sua posição privilegia­da frente à crise do coronavíru­s. A Kokku tem contratos fechados que preveem faturament­o para até o começo do ano de 2022.

“Querendo ou não, a gente já é bem sólido”, ele afirma. “Mas empresas menores, que não têm um fluxo de caixa bom, podem, sim, quebrar.”

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Ilustração Jairo Malta

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