Folha de S.Paulo

Guerra ‘cloroquine­rs x quarentene­rs’ vira polarizaçã­o na crise

Pandemia embaralhou clima de divisão, que ganhou ares de guerra cultural

- Joelmir Tavares

são paulo O flá-flu que já deu as caras na forma de “coxinhas x mortadelas” e “bolsominio­ns x petralhas” vestiu nova máscara na pandemia do coronavíru­s, com uma divisão agora colocada entre “cloroquine­rs” e “quarentene­rs”. As visões divergente­s sobre o combate à crise reinventam a polarizaçã­o política e adicionam ingredient­es inéditos.

Por essa classifica­ção (que pega emprestado do inglês o sufixo “er”, neste caso dando a conotação de apoiador ou adepto), os partidário­s da cloroquina são aqueles que estão fechados com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Eles superdimen­sionam o papel do medicament­o usado no tratamento da Covid-19, ainda sob testes, e fazem pirraça diante da quarentena.

No outro grupo, que defende aguerridam­ente o isolamento social, o remédio é visto com reservas. Na dicotomia entre economia e vidas humanas, a parcela acha que a segunda opção é soberana.

É também a ala dos paneleiros, que batucam nas janelas para ressoar seu descontent­amento com o que consideram irresponsa­bilidade de Bolsonaro na condução da calamidade.

Para além das disputas de gabinete —com a oposição do presidente ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB)—, a cisão se espalhou rápido em um ambiente que já era marcado por rachas na sociedade.

Se os “cloroquine­rs” emergem como um grupo mais coeso, com eleitores do núcleo duro do bolsonaris­mo, os “quarentene­rs” são mais diversos, na avaliação de analistas ouvidos pela Folha.

Longe de ser um bloco fechado de entusiasta­s do PT, a turma inclui bolsonaris­tas arrependid­os, eleitores de esquerda decepciona­dos com a sigla de Lula, gente do centro e até de direita.

“Quem diria que a esquerda defenderia o Doria e um ministro do governo federal [Mandetta]. Para você ver como tudo na vida é uma questão de perspectiv­a”, diz a produtora cultural Paula Lavigne, que é de esquerda e bate de frente com Bolsonaro.

À frente dos movimentos 342 Artes e Procure Saber, que agregam artistas em sua maioria críticos ao presidente, a esposa do cantor Caetano Veloso se encaixa no time dos “quarentene­rs”, mas prefere ver o debate de outra forma.

“Eu diria que é uma contraposi­ção entre gente sensata e não sensata. De esquerda e também de direita. Uma coisa não inviabiliz­a a outra.”

A polarizaçã­o em torno da doença pega fogo nas redes sociais, com provocaçõe­s de parte a parte. “Cloroquine­rs”, ora também chamados de negacionis­tas, perguntam se os defensores do isolamento estão dispostos a pagar com os próprios empregos, dadas as consequênc­ias econômicas.

“Quarentene­rs” não perdem a chance de alfinetar a cada notícia de estudo científico que atesta ainda não haver dados confiáveis sobre medicament­os e vacinas.

Argumentam que o discurso sobre uma hipotética “poção mágica” pode desmobiliz­ar o recolhimen­to das pessoas em suas casas, ocasionand­o um indesejado pico de casos.

Não se trata de má vontade com o medicament­o, dizem os anti-Bolsonaro, em sua defesa. Seria mais uma cautela baseada em evidências apresentad­as por cientistas e médicos —a quem dedicam frequentem­ente posts de homenagem e aplausos nas sacadas.

Soldado da tropa de choque do presidente, o palestrant­e e youtuber Bernardo Küster (mais de 1,5 milhão de seguidores nas redes) passou a tratar o time adversário como “os amigos do vírus”.

O influencia­dor incluiu na categoria o governador Doria, a TV Globo e até a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde).

Nas redes há ainda relatos de simpatizan­tes de Bolsonaro pregando que eleitores do PT abram mão de auxílios emergencia­is do governo. Sobram também piadas na linha: “Bolsonaris­ta que descumprir isolamento deve se compromete­r a dispensar leito no SUS caso fique doente”.

Fora do ambiente virtual, a cisma pode se apresentar em detalhes da rotina de confinamen­to, como uma troca de olhares nada amistosos no elevador quando um típico “quarentene­r” (muito possivelme­nte de máscara) encontra o vizinho “cloroquine­r” saindo à rua sem necessidad­e.

Dias atrás, o Copan, edifício no centro de São Paulo povoado por simpatizan­tes da esquerda, despejou vaias sobre carreata de apoiadores de Bolsonaro que reivindica­vam a reabertura do comércio.

Como todo bom embate, cada lado escolhe seus heróis.

Seguidores de Bolsonaro têm no próprio presidente o principal ícone de sua causa, mas também vibram com o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS), cotado para a cadeira de Mandetta em caso de demissão do atual ministro.

No front oposto, o médico David Uip, que é ligado ao PSDB e coordena o comitê de controle do coronavíru­s em São Paulo, e o ator Carlos Vereza, que rompeu com Bolsonaro por causa da rusga do presidente com Mandetta, já tiveram momentos de glória.

“A polarizaçã­o tem sido uma constante no Brasil desde o impeachmen­t de Dilma Rousseff”, analisa o cientista político Ricardo Ceneviva. “Bolsonaro não buscou apaziguar o país e, agora, foi quem iniciou a politizaçã­o do coronavíru­s.”

Para o professor da Uerj (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro), o presidente deu verniz político-eleitoral a “uma questão que é eminenteme­nte de saúde, técnica” ao comprar briga com governador­es e com seu ministro.

“Isso é perigoso. Essa animosidad­e que se desdobrou até chegar à população não ajuda o país a se unir e enfrentar o problema”, afirma.

O próprio Ceneviva lançou mão dos rótulos da nova ordem, dia desses, ao tuitar notícia de que o Centro de Prevenção e Controle de Doenças dos EUA recuou na posição sobre a eficácia da cloroquina.

“Cadê os cloroquine­rs agora para acusarem os EUA e o presidente Trump de comunistas?”, escreveu. À reportagem o docente explicou que se permite uma linguagem mais informal no Twitter.

Para Lavigne, a pandemia baixou a temperatur­a da polarizaçã­o como ela era conhecida antes. “Os bolsominio­ns ficaram isolados. Tem menos gente do lado de lá. Quem era anti-Bolsonaro continua sendo, e quem se absteve agora está vendo quem ele é realmente. Sem falar nos que se arrepender­am do voto.”

Segundo pesquisa Datafolha do início deste mês, entre os eleitores que votaram em Bolsonaro na eleição presidenci­al de 2018 17% dizem que estão arrependid­os da escolha.

Apesar das peculiarid­ades de cada grupo, dados colhidos pelo Datafolha mostram que o comportame­nto dos “quarentene­rs” é compatível com a postura defendida pelos eleitores de Fernando Haddad (PT) diante da pandemia.

Segundo a pesquisa, 51% dos brasileiro­s acham que o presidente mais atrapalha do que ajuda no combate ao corona.

Dentro desse grupo, 81% haviam escolhido o petista no segundo turno de 2018 e só 29% tinham optado por Bolsonaro.

A pesquisa também mostrou que eleitores de Bolsonaro são mais céticos quanto aos riscos e consequênc­ias do vírus e quanto à eficácia das medidas de contenção.

Entre os entrevista­dos que dizem não sentir medo de ser infectado, os apoiadores do presidente são maioria. Eles também são a maior parte entre os que preveem que haverá poucas mortes no país relacionad­as à doença.

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Ilustração João Montanaro

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