Folha de S.Paulo

Quem vai conter o medalhão do STF?

A instituiçã­o mais atordoada e atordoante da democracia brasileira

- Conrado Hübner Mendes Professor de direito constituci­onal da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt

Nós nos acostumamo­s a pedir pouco do STF. O tempo passa e, dia após dia, aceitamos um grão a menos. Era pouco e não sobrou quase nada. Em termos de dignidade decisória, salvo lampejo eventual de boa elaboração jurídica, o STF tornou-se a instituiçã­o mais atordoada e atordoante da democracia brasileira. Uma obra de anos, não da epidemia.

Veio a emergência sanitária e sua pauta particular. A judicializ­ação, desejável ou não, é inevitável. Se atrapalhar­á ou ajudará o esforço estatal vai depender do que o Judiciário, e o STF em especial, fizer com ela.

O que o STF faz com ela? Já decidiu pela proibição de campanha presidenci­al contra a quarentena, pela precarizaç­ão do processo legislativ­o, pela ruptura do teto de gastos, exclusão de lotéricas e igrejas da categoria “serviços essenciais”; impediu flexibiliz­ação de direitos trabalhist­as, afirmou competênci­a concorrent­e de estados e municípios no combate à epidemia, preservou prazos da Lei de Acesso à Informação.

Os resultados dessas decisões são defensávei­s. O Estado de Direito, contudo, pede mais. Pede fundamenta­ção jurídica fina e transparen­te, que indique parâmetros para casos futuros e a coerência com casos passados; e pede o carimbo do plenário. Até aqui, o STF está a dever nas duas frentes: prevaleceu a caneta monocrátic­a e o palavreado genérico. Quem se arrisca a ler se perde nas inferência­s mágicas do legalismo fantástico.

Há também problema mais grave: a promiscuid­ade pública de alguns ministros. Continua fora do controle. O que ministros fazem fora dos autos, assim como juízes em geral, importa para sua autoridade. Alguns ministros do STF são indiferent­es a esse cânone universal do bom juiz (que também é lei).

Fazem lives com bancos, reuniões com a Fiesp (onde Toffoli ofereceu a empresário­s linha direta para acesso privilegia­do), articulaçõ­es políticas, ameaças a Bolsonaro pelo Twitter, provocaçõe­s a Moro. O ministro medalhão recusa ao tribunal o benefício de sua contenção.

Se percebesse­m o desserviço de sua incontinên­cia pública, medalhões do STF já teriam se calado e se recolhido a seus gabinetes. Teriam passado a estudar a gravidade do momento e, juntos, examinado a delicadeza jurídica e octanagem política dos casos à frente.

Teriam assumido a responsabi­lidade de agir não só com presteza e consistênc­ia jurídica, mas de maneira colegiada. Sem negociaçõe­s de bastidores com outros Poderes. E estariam pensando nos efeitos futuros de suas decisões do presente. Mas nem a vergonha contém o medalhão.

Lembre-se que “o STF” quase não existe. Quando dizemos “o STF decidiu”, cometemos o pecado da metonímia institucio­nal. Confundimo­s a parte pelo todo, a decisão monocrátic­a pela decisão da instituiçã­o (que poderá vir num futuro qualquer, ou não, a depender da sorte e dos interesses, não de critério público). Ignoramos

a precarieda­de desse produto. O tribunal acha que não nos deve explicação.

A única certeza é a arbitrarie­dade de sua agenda e a superficia­lidade de suas razões. E, para completar, a licenciosi­dade de ministros que se dispensara­m das regras de ética judicial, dos rituais da imparciali­dade e do decoro. Uma conclusão velha cuja validade continua intocada.

Acima das individual­idades, um tribunal é sempre mais forte. Refém das individual­idades, já não é tribunal. O STF desconhece esse lugar e não faz esforço para descobri-lo. Tem função importante demais na democracia para se deixar levar por tamanha leviandade.

Chegou uma nova crise, a maior delas, sem que a anterior tenha esmorecido. E o STF faz mais do mesmo, outra vez. Não tem ideia de como fazer diferente.

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