Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões
Para professor de relações internacionais, resposta dura da embaixada do país asiático explicita mudança na sua diplomacia
são paulo Falar mal da China tem um custo. Ataques como o do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, deixam o Brasil em posição frágil e ajudam o governo chinês a conseguir concessões do Brasil em negociações.
Esse é o alerta de Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da FGV-SP. O acadêmico avalia que Pequim provavelmente não fará retaliações óbvias, como deixar de exportar máscaras e ventiladores mecânicos. Mas a reação diplomática às declarações de Eduardo e Weintraub revela “que a China não foge mais do confronto, e ela sabe que muitos grupos [no Brasil] dependem da boa relação” com os chineses, como empresários e o agronegócio.
Para Stuenkel, que está escrevendo um livro sobre a competição tecnológica entre os EUA e a China, a sinofobia não é exclusividade do governo Bolsonaro e veio para ficar.
“Muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política, criticar a China pode te eleger.”
Existe um esforço da China para fazer uma “diplomacia da máscara” em meio à pandemia, com doações de equipamentos médicos e assistência para ajudar o país a ganhar soft power?
Sim, a diplomacia da máscara é pensada primeiro para compensar a questão de a China ter sido o país de origem da pandemia, o que tem conotação negativa. Essa abordagem busca mudar a narrativa. Mas o segundo fator é que, para ser visto como um líder global, não bastam poder econômico e bélico, é preciso mostrar capacidade de prover bens públicos, de resolver problemas.
Se você olha a liderança americana após a Segunda Guerra, não foi só capacidade econômica ou militar que alçaram os EUA a essa posição, foi também a capacidade de resolver problemas, mediar conflitos, oferecer ajuda econômica e humanitária em momentos de crise e coordenar líderes para pensarem sobre determinada questão. A China percebe que tem os meios de liderar, e que os EUA não, existe vácuo de poder imenso.
O senhor disse que a resposta confusa dos EUA à pandemia indica que sua liderança global chegou ao fim. Os EUA abriram mão de serem os líderes globais?
Era inevitável. É preciso lembrar que a liderança americana, historicamente, é atípica, porque o mundo, do ponto de vista demográfico e econômico, sempre foi asiacêntrico. A ascensão chinesa em algum momento iria levar à volta desse mundo.
É muito evidente, no debate público americano, uma resistência crescente de liderar globalmente. Isso já vinha acontecendo, Donald Trump é reflexo disso, e a pandemia acelera o processo. Nos últimos 70 anos, nenhum país pensava em um problema internacional sem levar em conta a posição dos EUA. Isso certamente deixará de ser o caso.
A China também tem fragilidades para assumir uma liderança global, se considerarmos respeito a direitos humanos, transparência, democracia partidária. Como seria uma liderança chinesa póspandemia? Seria um outro tipo. Pela provisão de bens públicos, o país pode ser considerado muito atraente pelo mundo em desenvolvimento.
A China acumulou capacidade econômica, mas nunca tinha se posicionado de maneira mais visível como hoje. Mas ela faz isso porque sabe que a sinofobia também veio para ficar. E ela é inevitável, qualquer grande potência será atacada por políticos, porque as pessoas começam a se preocupar com essa ascensão.
O senhor já chamou a atenção para o fato de que a conta no Twitter da embaixada da China no Brasil tem mais seguidores do que a da embaixada dos EUA. Como os chineses estão conduzindo essa nova diplomacia pública mais assertiva no Brasil?
O mais importante para a China é não deixar sem resposta influenciadores ou autoridades que buscam associar o vírus à China. Antigamente, quando alguém falava mal da China, às vezes eles respondiam “gostaria de ressaltar a importância da nossa amizade”, mas nunca com ataques específicos. Agora, buscam aumentar o custo de falar mal da China.
Os casos de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub revelam que a China não foge mais do confronto e que sabe que muitos grupos dependem da boa relação. A embaixada recebeu cartas de governadores, de líderes empresariais e do agronegócio pedindo desculpas. Isso fragiliza o Brasil.
Aí, o [presidente Jair] Bolsonaro tem que ligar para o [líder chinês] Xi Jinping para pedir desculpas, possivelmente no meio de uma negociação sobre quantidade de compra de soja ou sobre a questão da Huawei, e é nesse momento que a China pode fazer avançar muito seus interesses.
Muita gente acha que o bolsonarismo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger. A China compreendeu essa dinâmica, então ficar calada não é mais uma opção.
Além de o embaixador chinês ter dados respostas duras aos ataques de Eduardo e Weintraub, houve relatos de que a China iria reduzir a compra de soja brasileira — embora não esteja claro se isso faz parte do acordo com os EUA para chegar à trégua na guerra comercial. Pode haver retaliações mais práticas?
Acho difícil a China utilizar compras de soja para mandar sinais diplomáticos, é um assunto muito importante pra eles. A China não é autossuficiente do ponto de vista alimentar nem energético, essas questões são o coração do projeto diplomático chinês. Não acho que vai passar muito pela via comercial.
O Brasil é meio que um assunto colateral em uma negociação mais importante com os EUA. Mas o que pode acontecer são empresários chineses ficarem inseguros em relação a investimentos. E a China simplesmente aproveita essas situações para avançar interesses em outras áreas na relação bilateral. Xi recebeu telefonema do Bolsonaro e três dias depois, o general Augusto Heleno disse que a Huawei poderá participar [da infraestrutura de 5G no Brasil].
É mais elegante do que dizer não compro mais a soja de vocês, porque vocês falaram mal da gente. Se uma parte do governo ataca, e a outra fica desesperada, essa ala fica mais disposta a fazer concessões por medo de a relação piorar.
O fortalecimento do nacionalismo e o contexto de lei da selva, em que países pagam mais para “roubar” encomendas de equipamentos de outras nações, vão continuar após a pandemia? Na crise, as pessoas se dão conta de que o Estado é a estrutura principal. As indústrias vão dizer: não podemos comprar de fora, precisa ser produzido aqui, pode haver outra pandemia. Os EUA compravam uma enorme porcentagem de seus medicamentos da China. Isso certamente acabou.
Esse ressurgimento do nacionalismo é uma resposta a essa sensação de instabilidade. Essa tendência veio para ficar, e é preciso reconhecer que, neste momento, o Estado tem um papel fundamental.
Alguns governos, como os da Hungria, das Filipinas e Israel, estão aproveitando para acumular poderes. Isso mudará após o fim da crise?
Essas crises aceleram tendências pré-existentes. Tudo isso já estava acontecendo. Isso dificilmente será revertido, porque, a partir de agora, sempre se pode defender posturas autoritárias em nome da saúde pública. Em países com instituições frágeis é um risco, e veremos outros países onde a democracia deve passar por um processo de erosão.
Como o Brasil deveria se posicionar em relação a China e aos EUA?
O Brasil deveria ter noção de que pedir ajuda à China neste momento, em vez de atacá-la, não significa estar de acordo com a política interna chinesa. O Brasil é um dos poucos governos do mundo que, nesta situação de pandemia, atacam de maneira direta o governo chinês. A longo prazo, equilibrar-se entre as duas potências será crucial. Deixar de se envolver sem necessidade em conflitos entre os dois é fundamental e difícil, pois há politização desses temas, uma nova guerra fria.
O senhor brincou que o Brasil é um dos quatro integrantes da aliança dos avestruzes —ao lado de Turcomenistão, Nicarágua e Belarus, que negam a gravidade da pandemia. Qual é o reflexo disso sobre nosso soft power?
Isso automaticamente inviabiliza qualquer postura de liderança no maior desafio que o mundo enfrenta neste momento. Em diplomacia, os desafios são oportunidades de você mostrar sua capacidade. É uma oportunidade perdida que gera a percepção de que o Brasil vive numa realidade paralela.