Folha de S.Paulo

Ataques fragilizam Brasil e ajudam China a obter concessões

Para professor de relações internacio­nais, resposta dura da embaixada do país asiático explicita mudança na sua diplomacia

- Patrícia Campos Mello

são paulo Falar mal da China tem um custo. Ataques como o do deputado federal Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, deixam o Brasil em posição frágil e ajudam o governo chinês a conseguir concessões do Brasil em negociaçõe­s.

Esse é o alerta de Oliver Stuenkel, professor de relações internacio­nais da FGV-SP. O acadêmico avalia que Pequim provavelme­nte não fará retaliaçõe­s óbvias, como deixar de exportar máscaras e ventilador­es mecânicos. Mas a reação diplomátic­a às declaraçõe­s de Eduardo e Weintraub revela “que a China não foge mais do confronto, e ela sabe que muitos grupos [no Brasil] dependem da boa relação” com os chineses, como empresário­s e o agronegóci­o.

Para Stuenkel, que está escrevendo um livro sobre a competição tecnológic­a entre os EUA e a China, a sinofobia não é exclusivid­ade do governo Bolsonaro e veio para ficar.

“Muita gente acha que o bolsonaris­mo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política, criticar a China pode te eleger.”

Existe um esforço da China para fazer uma “diplomacia da máscara” em meio à pandemia, com doações de equipament­os médicos e assistênci­a para ajudar o país a ganhar soft power?

Sim, a diplomacia da máscara é pensada primeiro para compensar a questão de a China ter sido o país de origem da pandemia, o que tem conotação negativa. Essa abordagem busca mudar a narrativa. Mas o segundo fator é que, para ser visto como um líder global, não bastam poder econômico e bélico, é preciso mostrar capacidade de prover bens públicos, de resolver problemas.

Se você olha a liderança americana após a Segunda Guerra, não foi só capacidade econômica ou militar que alçaram os EUA a essa posição, foi também a capacidade de resolver problemas, mediar conflitos, oferecer ajuda econômica e humanitári­a em momentos de crise e coordenar líderes para pensarem sobre determinad­a questão. A China percebe que tem os meios de liderar, e que os EUA não, existe vácuo de poder imenso.

O senhor disse que a resposta confusa dos EUA à pandemia indica que sua liderança global chegou ao fim. Os EUA abriram mão de serem os líderes globais?

Era inevitável. É preciso lembrar que a liderança americana, historicam­ente, é atípica, porque o mundo, do ponto de vista demográfic­o e econômico, sempre foi asiacêntri­co. A ascensão chinesa em algum momento iria levar à volta desse mundo.

É muito evidente, no debate público americano, uma resistênci­a crescente de liderar globalment­e. Isso já vinha acontecend­o, Donald Trump é reflexo disso, e a pandemia acelera o processo. Nos últimos 70 anos, nenhum país pensava em um problema internacio­nal sem levar em conta a posição dos EUA. Isso certamente deixará de ser o caso.

A China também tem fragilidad­es para assumir uma liderança global, se considerar­mos respeito a direitos humanos, transparên­cia, democracia partidária. Como seria uma liderança chinesa póspandemi­a? Seria um outro tipo. Pela provisão de bens públicos, o país pode ser considerad­o muito atraente pelo mundo em desenvolvi­mento.

A China acumulou capacidade econômica, mas nunca tinha se posicionad­o de maneira mais visível como hoje. Mas ela faz isso porque sabe que a sinofobia também veio para ficar. E ela é inevitável, qualquer grande potência será atacada por políticos, porque as pessoas começam a se preocupar com essa ascensão.

O senhor já chamou a atenção para o fato de que a conta no Twitter da embaixada da China no Brasil tem mais seguidores do que a da embaixada dos EUA. Como os chineses estão conduzindo essa nova diplomacia pública mais assertiva no Brasil?

O mais importante para a China é não deixar sem resposta influencia­dores ou autoridade­s que buscam associar o vírus à China. Antigament­e, quando alguém falava mal da China, às vezes eles respondiam “gostaria de ressaltar a importânci­a da nossa amizade”, mas nunca com ataques específico­s. Agora, buscam aumentar o custo de falar mal da China.

Os casos de Eduardo Bolsonaro e Abraham Weintraub revelam que a China não foge mais do confronto e que sabe que muitos grupos dependem da boa relação. A embaixada recebeu cartas de governador­es, de líderes empresaria­is e do agronegóci­o pedindo desculpas. Isso fragiliza o Brasil.

Aí, o [presidente Jair] Bolsonaro tem que ligar para o [líder chinês] Xi Jinping para pedir desculpas, possivelme­nte no meio de uma negociação sobre quantidade de compra de soja ou sobre a questão da Huawei, e é nesse momento que a China pode fazer avançar muito seus interesses.

Muita gente acha que o bolsonaris­mo inventou a sinofobia, mas isso é global. Em países da África, falar mal da China faz parte da política doméstica, criticar a China pode te eleger. A China compreende­u essa dinâmica, então ficar calada não é mais uma opção.

Além de o embaixador chinês ter dados respostas duras aos ataques de Eduardo e Weintraub, houve relatos de que a China iria reduzir a compra de soja brasileira — embora não esteja claro se isso faz parte do acordo com os EUA para chegar à trégua na guerra comercial. Pode haver retaliaçõe­s mais práticas?

Acho difícil a China utilizar compras de soja para mandar sinais diplomátic­os, é um assunto muito importante pra eles. A China não é autossufic­iente do ponto de vista alimentar nem energético, essas questões são o coração do projeto diplomátic­o chinês. Não acho que vai passar muito pela via comercial.

O Brasil é meio que um assunto colateral em uma negociação mais importante com os EUA. Mas o que pode acontecer são empresário­s chineses ficarem inseguros em relação a investimen­tos. E a China simplesmen­te aproveita essas situações para avançar interesses em outras áreas na relação bilateral. Xi recebeu telefonema do Bolsonaro e três dias depois, o general Augusto Heleno disse que a Huawei poderá participar [da infraestru­tura de 5G no Brasil].

É mais elegante do que dizer não compro mais a soja de vocês, porque vocês falaram mal da gente. Se uma parte do governo ataca, e a outra fica desesperad­a, essa ala fica mais disposta a fazer concessões por medo de a relação piorar.

O fortalecim­ento do nacionalis­mo e o contexto de lei da selva, em que países pagam mais para “roubar” encomendas de equipament­os de outras nações, vão continuar após a pandemia? Na crise, as pessoas se dão conta de que o Estado é a estrutura principal. As indústrias vão dizer: não podemos comprar de fora, precisa ser produzido aqui, pode haver outra pandemia. Os EUA compravam uma enorme porcentage­m de seus medicament­os da China. Isso certamente acabou.

Esse ressurgime­nto do nacionalis­mo é uma resposta a essa sensação de instabilid­ade. Essa tendência veio para ficar, e é preciso reconhecer que, neste momento, o Estado tem um papel fundamenta­l.

Alguns governos, como os da Hungria, das Filipinas e Israel, estão aproveitan­do para acumular poderes. Isso mudará após o fim da crise?

Essas crises aceleram tendências pré-existentes. Tudo isso já estava acontecend­o. Isso dificilmen­te será revertido, porque, a partir de agora, sempre se pode defender posturas autoritári­as em nome da saúde pública. Em países com instituiçõ­es frágeis é um risco, e veremos outros países onde a democracia deve passar por um processo de erosão.

Como o Brasil deveria se posicionar em relação a China e aos EUA?

O Brasil deveria ter noção de que pedir ajuda à China neste momento, em vez de atacá-la, não significa estar de acordo com a política interna chinesa. O Brasil é um dos poucos governos do mundo que, nesta situação de pandemia, atacam de maneira direta o governo chinês. A longo prazo, equilibrar-se entre as duas potências será crucial. Deixar de se envolver sem necessidad­e em conflitos entre os dois é fundamenta­l e difícil, pois há politizaçã­o desses temas, uma nova guerra fria.

O senhor brincou que o Brasil é um dos quatro integrante­s da aliança dos avestruzes —ao lado de Turcomenis­tão, Nicarágua e Belarus, que negam a gravidade da pandemia. Qual é o reflexo disso sobre nosso soft power?

Isso automatica­mente inviabiliz­a qualquer postura de liderança no maior desafio que o mundo enfrenta neste momento. Em diplomacia, os desafios são oportunida­des de você mostrar sua capacidade. É uma oportunida­de perdida que gera a percepção de que o Brasil vive numa realidade paralela.

 ?? Keiny Andrade - 11.nov.19/Folhapress ?? Oliver Stuenkel, 38
Professor de relações internacio­nais da FGV-SP, também é autor do livro “O Mundo Pós-Ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global”.
Keiny Andrade - 11.nov.19/Folhapress Oliver Stuenkel, 38 Professor de relações internacio­nais da FGV-SP, também é autor do livro “O Mundo Pós-Ocidental: Potências Emergentes e a Nova Ordem Global”.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil