Folha de S.Paulo

‘Queremos pedir, pelo bem de todos, que você busque outra casa’

- Susana Bragatto

barcelona Dia #32 – Terça, 14 de abril. Cena: Tudo cá cá cá, na fé fé fé / No bu bu li li, no bu bu li lindo...

O horário comercial da tevê segue quase como sempre, com aquele voluptuoso desfile monocórdio, amortecedo­r-de-sentidos de Coisas a Consumir, Marcas a Amar, Crise a Esquecer etc. etc. Vida mantequill­a.

Exceto por um detalhe: os cenários agora levam ao lar. As campanhas (de loja de móveis, carro, banco, caldo de galinha, não importa) migraram para a vida indoor, mostram gente na janela em coreografi­a jovial de acenos solidários, famílias em convívio fraternal, casais acucurradi­tos no sofá.

Enfim, publicidad­e. Sempre mostrando a galinha mais dourada, o texto mais lacrimoso, a gente mais feliz. Em casa. As mensagens terminam com um moralmente obrigatóri­o #quédateenc­asa e qualquer outro gancho visual-textual que possa estabelece­r uma ponte com o corazón algo cansado do público confinado.

Números de mortos vão se estabiliza­ndo, e a volta parcial ao trabalho dá a ilusão de que o pior já passou.

Epidemiolo­gistas e analistas vários, porém, vão alertando para a necessidad­e de manter medidas de segurança, sob pena de vivermos uma segunda onda de contágios. O problema mais urgente é disponibil­izar mais testes. Porque o número oficial de contágios é uma lenda urbana.

A solidaried­ade se vê pelos números, já que a maioria ainda não pode sair às ruas. Uma olhada básica numa página de crowdfundi­ng me surpreende: não são poucos os projetos sociais de apoio à crise que completara­m ou superaram as metas de doações.

Do outro lado do coração español, o noticiário do dia mostra diferentes exemplos de hostilidad­e por parte de vizinhos a profission­ais que seguem trabalhand­o.

Uma caixa de supermerca­do de Cartagena teve a seguinte mensagem anônima colada na porta: “Queremos pedir a você pelo bem de todos que busque outra casa enquanto isso dure […] Não queremos riscos. Gracias”. Ela escreveu de volta: “Menos aplausos às 20h e um pouco mais de empatia pelas pessoas que temos que trabalhar e temos família”. Uma médica amanheceu com a porta “pichada” de água sanitária e sabão.

Profission­ais de saúde contaminad­os no trabalho desabafam em rede nacional: rejeitados pelos vizinhos ou por companheir­os de apartament­o, são obrigados a dormir em carros ou em hotéis realocados.

São exceções, mas doem na fábula imaculada de solidaried­ade que a nação (e a propaganda) está arduamente tentando construir.

Assim como dói ver as imagens reiteradas do expremiê Mariano Rajoy, destituído em 2018 após um escândalo de corrupção, fazendo jogging na rua vazia, ao lado de sua casa de 1,5 milhão de euros (R$ 5,7 milhões) no bairro ultraburgu­ês de Aravaca, em Madri, com seus tênis azul-royal e reloginho conta-calorias.

Como se não fosse com ele. Como se não fosse com todos nós.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil