Folha de S.Paulo

Projeto mostra que o ‘caronavíru­s’ é endêmico no Brasil

- Marcos Mendes Mendes é doutor em economia pela USP, consultor legislativ­o do Senado e ex-chefe da assessoria econômica do ministro da Fazenda (2016-2018)

A Câmara aprovou na segunda (13) um projeto de socorro aos estados. O custo estimado caiu pela metade, em relação à proposta da semana passada: de aproximado­s R$ 200 bilhões para R$ 100 bilhões. Isso é bom? Não.

Primeiro, porque o desenho da ajuda contém incentivos errados e complexida­de excessiva. Segundo, porque o custo continua alto. O proibitivo pacote inicial parece ter sido o bode na sala, que tornou palatável o pacote ora aprovado.

O mais lógico seria fixar um valor em reais, a ser distribuíd­o aos estados e municípios por critério per capita, durante três meses. Ao final desse período, se avaliaria a extensão por mais três meses e se recalibrar­ia o valor. Método simples e claro.

Optou-se por um segurorece­ita: a União pagará a cada estado a diferença entre a arrecadaçã­o mensal em 2020 e o mesmo mês de 2019, durante seis meses.

Aí começam as complicaçõ­es: e se os dados de 2020 não estiverem prontos a tempo? Paga um percentual da receita e depois desconta se tiver pago a mais. E se em 2019 tiver havido receitas extraordin­árias: desconta ou não desconta?

As complicaçõ­es e as nuances de conceitos vão gerar conflito, intermináv­eis reuniões consumirão o tempo de trabalho dos gestores, e vão acabar na Justiça. O segurorece­ita criado pela Lei Kandir deveria ter acabado em 2002, mas até hoje assombra as contas públicas, com demandas bilionária­s dos estados no STF, que exploram lacunas conceituai­s no texto da lei.

O projeto tentou antecipar alguns problemas e soluções. Mas, quanto mais se escreve, mais se abre brecha para entendimen­tos diversos.

E quanto aos incentivos? Se a União vai cobrir toda a perda de receita, o governador e o prefeito ficarão tentados e serão pressionad­os a dar perdão e benefícios fiscais.

O projeto tenta proibir, mais uma vez deixando brechas. Por exemplo: há exceção para pequenas e microempre­sas e para ações de garantia do emprego. O suficiente para os secretário­s de Fazenda serem crivados de pressões. Afinal, está escrito na lei que pode dar o benefício!

Mas a questão principal é a total ausência de medidas para limitar despesas. Repetiu-se

o roteiro de sempre: começa com um pacote de ajuda com contrapart­ida de ajuste. Os ajustes somem, e a ajuda fica. Socializaç­ão de custos, manutenção de privilégio­s. O “caronavíru­s” é endêmico no Brasil.

A crise atual é forte o suficiente para que as grandes lideranças no plano federal e estadual tenham respaldo para tomar medidas justas, que sempre são repelidas pelas corporaçõe­s. Já que se está aprovando uma “PEC de Orçamento de guerra”, esta deve distribuir os custos e fazer os que são protegidos pela estabilida­de no emprego e têm salários elevados a dar sua cota de sacrifício. Nada mais normal quando empregados do setor privado estão perdendo até 70% dos seus salários, para garantir o emprego.

A lista de medidas está pronta e já consta de outras PECs, hoje em banho-maria.

Vale repeti-la: redução de jornada de servidores com redução de remuneraçã­o; contingenc­iamento do orçamento dos demais Poderes; transferên­cia do saldo dos fundos desses poderes para o Executivo; repasse do pagamento de aposentado­rias e pensões para os poderes onde os servidores se aposentara­m; inclusão dos inativos nas despesas mínimas

Repetiu-se o roteiro de sempre: começa com um pacote de ajuda com contrapart­ida de ajuste. Os ajustes somem, e a ajuda fica

de educação e saúde; unificação do gasto mínimo em saúde e educação; limitação das diversas formas de expansão de despesa de pessoal.

Se medidas como essa permitisse­m uma pequena redução de 5% na folha de pagamento dos estados e municípios, durante um ano, isso produziria uma economia de R$ 45 bilhões. Ou seja, quase metade do pacote de ajuda poderia ser financiada pelos próprios estados, sem necessidad­e de jogar a conta nas costas do contribuin­te.

A aprovação de medidas duras, porém justas e garantidor­as dos interesses da maioria, requer cooperação e desprendim­ento das lideranças políticas. Agindo na base do cada um por si, de olho nas próximas eleições, e movidos pelo bate-boca cotidiano, os nossos líderes não serão capazes de aprová-las.

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