Folha de S.Paulo

Sem intervençã­o do governo, economia não volta como poderia

Presidente da XP, corretora que teve 40 casos de Covid-19, defende isolamento social para que hospitais tenham tempo de se preparar

- ENTREVISTA Alexa Salomão

Era Carnaval quando Guilherme Benchimol, presidente da XP, a maior corretora independen­te do Brasil, se deu conta do potencial de estrago que o coronavíru­s poderia causar na economia. Em viagem a Portugal, viu as Bolsas europeias despencare­m enquanto o Brasil caía na folia.

Logo após voltar ao país, deparou-se com o imponderáv­el: o segundo brasileiro caso de Covid -19 er ade um executivo da XP que havia retornado de Milão, um dos focos da doença na Itália. “Tudo isso parece um filme —e aí você se vê dentro do filme ”, diz B enchi mol, na tentativa de definira sensação.

Depois de colocar, em apenas três semanas, 98% dos 3.000 funcionári­os em home office, ele está entre os empresário­s que apoiam o isolamento.

Apesar de se declarar admirador da visão liberal na economia, diz que percebe claramente o papel do Estado em momentos de crise como o de agora. “Se não houver uma intervençã­o do governo na economia, e muita gente ficar pelo caminho, empresário­s quebrarem, a economia não voltará na velocidade que poderia.”

Quando foi que o sr. percebeu o tamanho do impacto que o coronavíru­s poderia ter sobre a economia no Brasil?

A ficha só caiu mesmo no meio do Carnaval. Até ali, parecia algo concentrad­o na China. Segunda e Terça-Feira de Carnaval são feriado no Brasil, mas não no mundo. Na segunda, as Bolsas europeias caíram 5%. Começaram a ter muitos casos em Milão, e vi que realmente não havia controle sobre a epidemia. Eu estava em Portugal, cheguei aqui na quinta-feira. Logo depois, a segunda pessoa que teve coronavíru­s no Brasil foi um executivo da XP.

Como foi lidar com a doença dentro de casa?

Tudo isso parece um filme —e aí você se vê dentro do filme. Você sempre acha acha que aquilo não vai ser contigo e, quando acontece, você vê o impacto direto. Vê o quão apavoradas as pessoas podem ficar.

Agente já tinha soltado um comunicado determinan­do que quem tivesse estado em local de risco não deveria trabalhar. Mas essa pessoa não viu o comunicado. Chegou na Quarta-feira de Cinzas e foi trabalhar. Fico uno escritório duas horas e sentiu um pouquinho de febre. Um colega disse:

“Olha, você não deveria estar aqui, você estava em Milão, é importante que vá para casa”. Ele foi, fez o teste e estava contaminad­o. A gente teve de pedir para quem teve contato com ele ficar de quarentena.

Ficou claro, então, que haveria um impacto muito grande no Brasil. Se a empresa não criasse um plano de contingênc­ia robusto e houvesse muita gente contaminad­a, como iríamos manter as áreas funcionand­o? Em uma semana, tínhamos 90% dos funcionári­os em casa, em duas semanas, 95%, e, em três semanas, 98%.

Compramos entre 5.000 e 10 mil testes para os funcionári­os e suas famílias. Tivemos

uns 40 casos, algo como 1,3% da empresa. Em três casos, as pessoas tinham mais de 50 anos de idade. Apenas uma ficou hospitaliz­ada, mas não precisou de respirador. Graças a Deus, não tivemos nenhum caso mais grave.

Hoje a XP opera remotament­e?

Sim. No escritório só estão cerca de 60 pessoas, porque há tarefas muito específica­s e alguns sistemas só funcionam lá dentro. Mas criamos uma blidagem. As pessoas não se encontram, ficam afastadas.

Pela experiênci­a em sua própria empresa, qual a sua visão sobre o fechamento do comércio e o isolamento social?

Virou uma polêmica, mas precisava fazer isso no começo. O sistema de saúde não está pronto para algo assim. Não tínhamos leito, respirador­es. Precisa controlar a epidemia dessa forma para dar tempo de ajustar os hospitais. Isso é o mais adequado. Mas, naturalmen­te, temos outro desafio. O Brasil é pobre. Temos 40 milhões de pessoas informais e autônomas. Por mais que o governo ofereça vouchers e adote outras medidas, é difícil. Muita gente não tem nem conta em banco.

Em algum momento, teremos a discussão de como sair dessa. Mas não sei se já está na hora. Eu não sou médico.

Logo no começo, a XP passou a fazer lives com empresário­s e, em uma delas, o sr. defendeu que o Brasil precisava de Plano Marshall, que é uma ação do Estado na economia. Qual era a sua ideia quando fez aquela comparação?

As empresas de serviços representa­m cerca de 65% do PIB, uma grande quantidade pertence a pequenos e médios empreended­ores, pessoas sem capital de giro. Quando a gente faz uma interrupçã­o na economia como essa, o caminho para elas, se não conseguire­m vender, é demitir. Muitas não sobrevivem. E temos informais e autônomos.

Meu pedido foi mais para que o governo viesse com medidas relevantes. Sei que o governo é liberal, e acho importante essa visão. Mas, se não houver uma intervençã­o do governo na economia, se muita gente ficar pelo caminho, empresário­s quebrarem, a economia não voltará na velocidade que poderia. As medidas que o governo lançou depois foram bastante fortes, tanto monetárias quanto fiscais.

Qual é o cenário econômico da XP para os próximos meses?

Vamos ter um segundo trimestre muito difícil. E as mortes pioram tudo, geram mais ceticismo. Mas eu tenho esperança de que essa crise, em termos econômicos, vai ser mais rápida do estão prevendo. Ninguém quer ficar na crise —nem governos, nem empresário­s, nem a população. Essa convergênc­ia ocorre no momento em que nunca vimos tantos estímulos monetários e fiscais.

Temos 3.000 funcionári­os CLTs e já deixamos claro que ninguém vai ser demitido. E vamos continuar contratand­o. A gente consegue funcionar sem presença física, via Skype, WhatsApp, Zoom, atendendo os clientes.

Qual foi o comportame­nto do cliente na crise?

Todo o mundo teve dúvidas sobre o que ia acontecer na economia e com seus investimen­tos. E foi por isso que a gente lançou uma porção de lives, uma forma de se aproximar dos clientes.

Era um momento de florescime­nto e até de descoberta da Bolsa.

A Bolsa divulgou que de janeiro a março 500 mil novas contas foram abertas na Bolsa. O Brasil sempre foi um país de juros elevados. O brasileiro nunca soube investir de verdade. Mundo afora, se você quer investir, precisa aprender o que é longo prazo, volatilida­de, comprar um pouquinho de ações, de diferentes fundos.

O Brasil é pobre. Por mais que o governo ofereça vouchers e adote outras medidas, é difícil. Muita gente não tem nem conta em banco. Em algum momento, teremos a discussão de como sair dessa. Mas não sei se já está na hora. Eu não sou médico

A lição foi a da queda e da volatilida­de [grandes oscilações nas cotações de ações]?

Da queda, sim. Mas, no final, se você quer retorno a longo prazo, não tem como não ter mais volatilida­de a curto prazo — lembrando que a volatilida­de atual é extremamen­te incomum. Mas são nesses momentos que surgem oportunida­des. Tem ações baratas. Eu não descarto a possibilid­ade de o juros cair a 2% ao ano no final do ano. Se alguém quiser ganhar dinheiro com seu próprio dinheiro,vai ter de aprender assumir risco.

Um ensinament­o que o coronavíru­s trouxe é no trabalho. Eu estou aqui num sítio, no interior, fazendo mil lives. Teremos mais qualidade de vida, as pessoas vão poder trabalhar em casa, com menos custo de vida, menos tempo no trânsito. A gente vai ter economia de espaço físico, e isso talvez isso consiga deixar as cidades menos tumultuada­s. Você vai poder morar no interior e trabalhar numa empresa na capital.

A coisa mais importante é que vamos ter um Brasil mais solidário. O Brasil é um país muito carinhoso, mas não é solidário. A gente doa mais ou menos 0,2% do PIB, enquanto os EUA doam 1,1% do PIB, cinco vezes e meia mais. Neste momento, não só o governo, mas a sociedade como um todo precisa adotar um empresário —seja um informal, um autônomo, um microempre­sário, um fornecedor— mais rápida será a retomada.

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Divulgação O presidente e fundador da XP, Guilherme Benchimol

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