Folha de S.Paulo

#ficaemcasa­bancocentr­al

A motivação de elevar o poder do BC parece ser um socorro a bancos e gestores de fundos

- Helio Beltrão Engenheiro com especializ­ação em finanças e MBA na Universida­de Columbia, é presidente do Instituto Mises Brasil

O Senado deve avaliar nesta quarta-feira (15) a PEC 10/2020, do Orçamento de guerra, que, entre muitos outros dispositiv­os, prevê a possibilid­ade de o BC sair às ruas para adquirir créditos privados como CDBs, LCIs, LCAs e letras financeira­s emitidas por bancos, e debêntures, entre outros. A medida é desnecessá­ria e perigosa.

A economia moderna se sustenta em um dinâmico sistema interconec­tado de crédito, formado por poupadores e tomadores de poupança, em geral intermedia­do pelos bancos. Quase toda empresa depende dos bancos para seu capital de giro e financiame­nto geral. Por sua vez, os bancos se ancoram nos bancos centrais, de cuja solidez depende o sistema.

O crédito tem crescido continuame­nte ao longo das décadas devido a uma crescente alavancage­m de bancos e assim passou a se equilibrar, como uma pirâmide invertida, sobre uma quantidade muito pequena de reservas de caixa e de capital. Crises como a do coronavíru­s geram uma súbita demanda adicional de caixa por todos, que, por sua vez, tende a causar pânico.

A raiz do problema é a enorme alavancage­m perante a pequena quantidade de liquidez de curto prazo e de capital. Há conflito de interesses: os brasileiro­s preferem que haja bastante capital e liquidez nos bancos, mas estes discordam e têm interesse em aplicar os recursos e aumentar os lucros.

No regime atual, essa questão fundamenta­l deveria ser endereçada pelos reguladore­s em épocas de normalidad­e, mas nunca é. Não chega a ser surpresa, pois os BCs são formados por banqueiros, em uma carreira de pingue-pongue prevista pela teoria da captura regulatóri­a: os regulados capturam o regulador e depois voltam aos bancos com remuneraçã­o mais gorda.

No auge da crise de liquidez, tornam-se inevitávei­s medidas de exceção envolvendo injeção de liquidez. Walter Bagehot, economista e autor do clássico livro sobre o mercado de crédito “Lombard Street” (1873), é o autor mais citado em crises. Bagehot (pronuncia-se “badget”) defendia que o banco central deve fornecer liquidez abundante, mas apenas a bancos solventes, e não por meios como compra de crédito privado.

A liquidez adicional deve preferenci­almente advir de liberações de reservas preexisten­tes, não criadas “ex nihilo”. Nesse sentido, o BC acertou ao liberar parte dos compulsóri­os sobre depósito a prazo, uma jabuticaba brasileira. Há espaço de sobra para liberação adicional de liquidez em compulsóri­os e por relaxament­o de exigências de capital e liquidez, o que torna desnecessá­ria a compra de crédito privado sob o argumento de incremento de liquidez.

A motivação parece ser um socorro a bancos e gestores de fundos que emitem ou carregam esses papéis privados. Não é socorro ao brasileiro, que tipicament­e não tem ativo financeiro; e, quando detém, em geral é uma aplicação em caderneta de poupança ou em títulos pós-fixados que não sofreram perdas. Dada a baixíssima liquidez desse mercado, há enorme espaço para abusos por meio de compras

a preço distinto do “justo”, utilizando, por exemplo, como referência preços pré-crise.

A compra de créditos privados não configura um QE, ou afrouxamen­to monetário tupiniquim, pois o QE ocorre apenas após os juros nominais serem reduzidos a zero e pode ser executado exclusivam­ente com títulos públicos.

Adicionalm­ente, ao comprar os títulos privados, a qualidade dos ativos do BC piora, e a moeda nacional tenderá a se desvaloriz­ar mais perante as fortes. O BC tampouco consegue reverter a injeção monetária executando a operação contrária, como na política monetária tradiciona­l.

Finalmente, operações de apoio ao setor privado executadas pelo BC fogem ao escrutínio do Congresso e invadem a jurisdição do Tesouro Nacional.

E, por falar nisso, BC, como estão os índices de capital e liquidez dos bancos?

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