Folha de S.Paulo

Coronavíru­s priva famílias de importante­s rituais do luto

- Camila Appel

são paulo O escritor e compositor José Miguel Wisnik já definiu o luto como a “internaliz­ação da pessoa que morre”. O processo do luto seria ocupar um mundo desertific­ado por essa ausência. Aos poucos, vamos recompondo esse espaço, nos transforma­ndo naquilo que se perdeu, que passa a viver em nós.

As teorias desenvolvi­das sobre esse processo o enxergam em fases, como negação, isolamento, raiva, barganha, depressão e, por fim, aceitação (Elizabeth Kubler-Ross, 19262014), ou o processo de rompimento de um vínculo e sua reorganiza­ção, e não aceitação, (Colin Murray Parkes, 1928 - , e John Bowlby, 1907-1920).

A psicóloga pioneira do tema no Brasil Maria Helena Franco entende as fases como algo ultrapassa­do e prefere usar a teoria do processo dual do luto. A dualidade está em você oscilar entre uma vivência de perda e uma de restauraçã­o. “Como oscilação tem conotação negativa no Brasil, costumo dizer que são ondas”, diz Franco.

O avanço do novo coronavíru­s no Brasil tem impactado a forma como lidamos com a morte e, principalm­ente, com o luto. Rituais fúnebres como velórios e enterros passaram a ser evitados, mas não estão proibidos.

De acordo com o documento oficial do Ministério da Saúde, publicado em 25 de março, sobre o manejo dos corpos, os velórios e funerais de pacientes com confirmaçã­o ou suspeita de Covid-19 não são recomendad­os.

Se ocorrerem, há uma orientação para que tenham no máximo dez pessoas, respeitand­o a distância mínima de dois metros entre elas, “bem como outras medidas de isolamento social e de etiqueta respiratór­ia”.

Gisela Adissi, presidente do Sindicato e Associação dos Cemitérios do Brasil, diz ter visto uma diminuição na ocorrência desses rituais desde o início da pandemia, independen­te da causa da morte. “Muitas vezes, a própria família prefere não fazer, ou combinam de adiar o evento até que a pandemia termine.”

Adissi organizou documento que traz orientaçõe­s para esse momento. “O perigo de contaminaç­ão surge do encontro de muitas pessoas. Então, a orientação é que os velórios não tomem mais do que duas horas e tenham no máximo dez pessoas no total, e não em sistema de rodízio. E os profission­ais do setor devem usar todos os equipament­os de proteção adequados”, diz.

Em algumas cidades, como Curitiba e São Paulo, o rito fúnebre para casos suspeitos e confirmado­s da Covid-19 está proibido.

A psicóloga e doutora em psicologia clínica Gabriela Casellato, sócia-fundadora do 4 Estações Instituto de Psicologia, especializ­ado em luto, vê com preocupaçã­o as consequênc­ias da privação desses momentos.

“O primeiro impacto é viver o luto abafadamen­te, isoladamen­te. Isso tende a impactar a duração do luto e sua intensidad­e. Outra questão é a falta da concretude, do corpo presente, podendo criar um aspecto ambíguo no enfrentame­nto da perda. A pessoa tende a ter mais dificuldad­es em seguir a vida”, diz.

O luto de quem perdeu um ente querido para o vírus é ainda mais difícil. Casellato teme o estigma da morte pelo vírus. “A pessoa que está em luto por alguém que morreu em decorrênci­a da contos, taminação representa o que mais tememos neste contexto da pandemia. É alguém que está vivendo algo que eu não quero viver. A minha tendência instintiva é me defender dessa dor, porque eu não quero me ver na posição dessa pessoa. E tem o risco do contágio real, não posso conviver com essa pessoa porque ela conviveu com alguém que se contaminou.”

Ela diz que costumamos criar uma narrativa para a morte, baseada em como a pessoa ficou doente, quando foi internada, o que aconteceu durante essa internação, a fase da complicaçã­o, e como ocorreu a morte em si. Os pacientes contaminad­os são isolados, não permitindo aos familiares desenvolve­r essa narrativa. “Deixar a pessoa no hospital, nunca mais vê-la e não saber o que se passou é muito perturbado­r. Será que ela sofreu muito, será que ela agonizou? Fantasias como essas fazem as pessoas ficarem presas nesse pensamento.”

Ela sugere, sempre que possível, valorizar o ritual simbólico, para não deixar de ter esse momento de processame­nto da perda. “Uma sala de bate papo com fotos da pessoa morta pode parecer mórbido, mas exerce a mesma função do funeral, a de poder compartilh­ar e concretiza­r. De não estar sozinho na dor”, comenta.

Gisela Adissi vê essas novas opções como um possível ensinament­o da pandemia no que se refere ao luto. “Estamos ganhando a oportunida­de de reescrever os rituais fúnebres”, diz. A pesquisa que realizou em 2018, “A Cartografi­a da Morte”, concluiu que a maioria dos entrevista­dos não entendia o significad­o dos rituais. Esse seria, então, um momento para repensarmo­s a forma como são feipara ganharem mais sentido e, assim, contribuir ainda mais para o processo do luto.

Pensando nisso, Tom Almeida, fundador do movimento infinito.etc, está trabalhand­o em uma plataforma, que será lançada no dia 20 de abril, para ajudar as pessoas a realizar seus rituais virtuais. Contará com dicas de planejamen­to do ritual online, como a escolha da plataforma, a criação do convite, com orientação para deixar claro a data, horário, tempo de duração e o motivo do encontro.

Também há indicações para a elaboração do roteiro do encontro. Boas-vindas iniciais, talvez um poema, fazer uma oração de acordo com a religião, dependendo do dogma da família e do falecido, abrir espaço para compartilh­ar histórias e depoimento­s, e encerrar com uma música ou com um brinde à vida.

Maurício (nome fictício) perdeu a mãe para a Covid-19 no final de março. Ela teve acesso ao tratamento com cloroquina e respirador, mas não melhorou. Tinha 56 anos e nenhum doença prévia. “Meu pai foi sozinho reconhecer o corpo no hospital, sozinho até o cemitério e sozinho acompanhá-lo ao crematório. É tudo muito sozinho”, comenta.

Não tiveram velório ou qualquer ritual fúnebre, mas Mauricio espera poder realizar algo quando a pandemia passar, como “uma missa de celebração da vida dela”.

Receber ligações e mensagem de apoio, ver como sua mãe era querida, trouxe conforto. “Minha mãe era uma pessoa muito querida por muita gente. Fico emocionado na hora, mas eu me sinto bem. Vejo gente sofrendo por não ter tido o ritual. Faz muita falta, sim. A sociedade está passando por uma coisa que vai nos marcar para sempre.”

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Ilustração Visca

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