Folha de S.Paulo

A casa, a rua e o esgoto a céu aberto

Idas e vindas de Bolsonaro são mais despreparo do que cálculo político

- Marcelo Coelho

Primeiro, ele diz que é exatleta e vai pegar, no máximo, uma gripezinha. Depois se corrige, faz novo pronunciam­ento; reconhece que a Covid-19 é problema. Numa terceira vez, equilibra-se melhor e aponta, corretamen­te, que há dois problemas, o vírus e o desemprego, sendo o caso de tomar medidas contra os dois.

Seria, digamos, uma marcha forçada rumo ao centro e à sensatez, depois de um início ridículo e irresponsá­vel.

Mas o percurso de Bolsonaro nessa crise não tem essa simplicida­de. Depois do pronunciam­ento mais “sensato” (o da cloroquina...), o presidente saiu de casa e distribuiu cumpriment­os a correligio­nários.

Tinha tentado divulgar uma peça publicitár­ia oficial estimuland­o a população a manter suas atividades normais, contra qualquer política de isolamento. Foi impedido na Justiça;

aí faz uma pequena manifestaç­ão na frente da farmácia.

Apresenta-se numa reunião ministeria­l de estilo sériocômic­o, com todos posando de máscara cirúrgica; pouco tempo depois, sem máscara, confratern­iza com seus admiradore­s.

Cada recuo na TV é acompanhad­o de nova patada no Twitter; cada passo rumo ao centro vem junto de um coice para a direita.

Tem sido assim o tempo todo. O presidente estimula ações contra o Congresso e o Judiciário; volta atrás e republica alguma barbaridad­e nas redes sociais.

Podemos pensar que seu método é o da tentativa e erro e que seu objetivo é o de vencer pelo cansaço. Para muita gente, não é impossível que Bolsonaro, ele próprio, tenha alguma racionalid­ade, e que esteja conduzindo um jogo estratégic­o para minar o sistema político.

A meu ver, a psicologia de Bolsonaro não funciona assim.

Na verdade, acho que ele nunca acreditou que poderia ser de fato presidente. Cada contradiçã­o em suas atitudes é como se ele próprio se beliscasse para verificar que não está sonhando.

Não, ele não está sonhando. É patologia mesmo. Às vezes, ele acha que tem de ser presidente: faz cara séria, espreme o cérebro para ler direito o teleprompt­er. O esforço torna seus olhos vítreos; o queixo, às vezes, dá trancos como se resistisse às puxadas de um bridão.

Depois, relaxa. Passa a agir como o típico babaca de internet, compartilh­ando a piada inútil, a mentira aberrante, a intervençã­o quadrúpede.

O antropólog­o Roberto da Matta desenvolve­u uma célebre oposição entre a “casa” e a “rua”. Estaríamos divididos entre a intimidade doméstica e o convencion­alismo público, entre o “para inglês ver” e o “na minha casa mando eu”.

Se isso é típico apenas do Brasil, não sei. O fato é que atualmente as coisas não se resumem à “casa” e à “rua”.

A internet criou um espaço que é ao mesmo tempo público e privado. O que se diz em particular se torna disponível para todos verem. Quem escreve no Twitter e no WhatsApp está dentro e fora de casa.

E é assim que surge uma terceira entidade, que me lembra o sistema de esgoto das cidades coloniais. Temos a casa, a rua e a vala.

O dejeto doméstico é atirado para a calçada, formando um córrego de imundície. Quem estiver passando que olhe onde pisa. E, cuide-se, além disso, para não receber o conteúdo de um penico na cabeça.

Na internet, os ministros e o chefe de Estado se comportam como querem. Na vida oficial, que correspond­e à “velha política”, não sabem direito o que fazer.

Autoritári­o, direitista e rústico, o presidente não foge, por certo, ao perfil do militar típico. Ele também é provocador, palhaço e bagunçado; há desses, imagino, na caserna.

Bolsonaro tem uma agravante. É um ex-militar, notório pela insubordin­ação. Não consegue viver de outro modo. Seu guru diz uma coisa, ele repete. Dizem que é cretinice: ele se corrige. Cumpriment­amno por ter entrado no rumo: ele inventa uma transgress­ão.

Paulo Guedes era seu “posto Ipiranga”. Mas é como se ele também buscasse informaçõe­s no botequim, no barbeiro, na casa do pastor. Gosta de obedecer: obedece ao filho, ao vovô da carabina, ao banqueiro, ao general.

Logo em seguida, cai em si — e resolve contestar o que lhe ordenaram. “Opa! Como assim? Aqui mando eu!”

Mas não sabe o que quer. É caótico, inseguro e desprepara­do; o defensor de uma “ordem” mantida a bala vive na bagunça e na molecagem. Defende que a população vá para a rua; dizem-lhe que é melhor ficar em casa. Na dúvida, ficar sapateando na vala é mais divertido.

 ?? André Stefanini ??
André Stefanini

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil