Folha de S.Paulo

Aumentar a escala da rede

Medida pode salvar vidas e nos tornar menos desiguais

- Ligia Bahia Doutora em saúde pública, é professora da UFRJ (Universida­de Federal do Rio de Janeiro)

O novo coronavíru­s é repentino, devastador e universal. Já houve crises sanitárias mais letais, mas a maioria permaneceu territoria­lmente circunscri­ta, e registrams­e aquelas disseminad­as, porém, quase sempre, com menores taxas de mortalidad­e.

A surpreende­nte ameaça à saúde vem sendo respondida com medidas também inusitadas. Estratégia­s de distanciam­ento social se conjugaram com a reorganiza­ção de recursos assistenci­ais.

Países como a Austrália, Irlanda, Espanha, Reino Unido procuraram reunir de forma coordenada insumos estratégic­os. Barreiras de natureza jurídica foram rompidas pela celebração de acordos para uso comum de estabeleci­mentos privados durante a pandemia.

A maior parte dos termos de cessão de uso prevê o pagamento de valores compatívei­s com a manutenção dos hospitais, deduzindo o lucro. É vantajoso para ambas as partes porque evita a ociosidade decorrente das recomendaç­ões de adiamento de exames e internaçõe­s eletivas e permite a necessária expansão de leitos por preços justos. O uso compartilh­ado de leitos, acrescido com a montagem de hospitais de campanha, conforma uma escala adequada para a magnitude da pandemia.

Para o Brasil, onde a participaç­ão do setor privado é superior à de países com alta renda, o gerenciame­nto da capacidade instalada existente é vital para impedir discrimina­ção de acesso para a maioria da população. Temos uma inversão entre a oferta de leitos e as necessidad­es de internação. O SUS conta com apenas 53% do total de leitos de terapia intensiva. Antes dos casos de Covid-19 já era um calvário conseguir tratamento para pacientes graves na rede pública. Sem medidas para diminuir a desigualda­de preexisten­te para o uso de procedimen­tos de suporte à vida, a veloz disseminaç­ão da doença poderá acentuar iniquidade­s, inclusive entre quem tem plano privado de saúde.

Parte significat­iva dos clientes da saúde suplementa­r está vinculada a redes assistenci­ais de baixa complexida­de tecnológic­a. A displicênc­ia com a inovação de determinad­as empresas conformou um setor que manifesta desprezo pelos desfechos assistenci­ais e apela para o aumento de subsídios governamen­tais ao menor sinal de perda de receitas.

Agora, quando está comprovado que a experienci­a de profission­ais de saúde e disponibil­idade de equipament­os faz toda a diferença, seus porta-vozes parecem desatinado­s. Chegaram a demandar, quando a curva epidêmica ascende, o retorno de pacientes eletivos. Ou seja, o perigo do contato de doentes infectados com pessoas com comorbidad­es seria inferior ao de balanços financeiro­s negativos.

A comparação dos resultados do tratamento de pacientes evidencia que leitos vazios devem ser ocupados pelos acometidos pela Covid-19. A experiênci­a de Nova York é traumática. A pandemia nos EUA, apesar do elevado gasto com saúde e sofisticad­os hospitais, mas com clivagens definidas pela capacidade de pagamento, deixou um rastro duplamente trágico: número de mortes elevadas e diferencia­is desfavoráv­eis para latino-americanos e negros. A gestão única de leitos —com tempo definido, baseada na combinação de critérios de gravidade dos casos, proximidad­e geográfica e garantias previstas nos contratos dos planos—, é factível e assegura a priorizaçã­o das necessidad­es dos doentes. Compatibil­izar direito à saúde com os de propriedad­e é uma tarefa urgente e exigente de sincera disposição para o diálogo; se bem executada, salvará vidas e nos tornará menos desiguais.

Sem medidas para diminuir a desigualda­de preexisten­te para o uso de procedimen­tos de suporte à vida, a veloz disseminaç­ão da doença poderá acentuar iniquidade­s, inclusive entre quem tem plano privado de saúde

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