Folha de S.Paulo

O médico e o monstro

A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudenteme­nte ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.

Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarizaçã­o política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.

A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa “gripezinha”. As sociedades reagiram, atemorizad­as pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos. Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da “economia”, todos os demais constituía­m uma frente ampla em defesa da “vida”.

A quarentena converteus­e em programa político —e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.

Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentena­s reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuai­s. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa.

A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuiç­ão de fundos públicos. A “mão invisível” do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobali­zação.

Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrol­ados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governante­s que se associam a bispos de negócios empenhados na restauraçã­o da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritári­a pelo “governo dos médicos”.

O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconiana­s que as da Itália

ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendaç­ões de equipes de especialis­tas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativame­nte baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representa­ntes eleitos pelo povo.

A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governador­es. Merkel guiou-se por um relatório encomendad­o à Academia Nacional de Ciências.

O roteiro foi preparado por 26 experts —entre os quais, além de médicos, contam-se economista­s, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergencia­is devem ser gradualmen­te removidas “por razões constituci­onais”. A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativo­s: saúde, economia, liberdades constituci­onais.

Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergênci­as, dissonânci­as, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamen­te ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida –e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilid­ade gerada por um colapso hospitalar.

“Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamenta­lmente incompatív­eis entre si, mas mutuamente dependente­s”, escreveram os experts, sintetizan­do um consenso nacional.

Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na “cultura” dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivam­ente, um microrgani­smo.

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