Folha de S.Paulo

AGU nega ou ignora condutas de Bolsonaro ao defendê-lo na crise

Tática é apontar fake news nos questionam­entos levados ao Judiciário contra o presidente, até no caso de fatos públicos

- Carolina Linhares

são paulo Responsáve­l pela defesa judicial do presidente da República, a AGU (Advocacia-Geral da União) tem adotado a estratégia de ignorar ou negar atitudes de Jair Bolsonaro (sem partido) na crise do coronavíru­s, mesmo que sejam públicas e tenham sido amplamente noticiadas.

O caso mais recente é da semana passada, quando a AGU respondeu à Justiça Federal do Distrito Federal dizendo que não existe uma sala ocupada pelo vereador Carlos Bolsonaro (Republican­os-RJ) no Palácio do Planalto.

A AGU também afirmou não existir a campanha “O Brasil não Pode Parar”. O mote foi usado em três publicaçõe­s em perfis oficiais do governo dias após discurso de Bolsonaro em rede nacional contra o isolamento social recomendad­o pela OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde).

Os posts com #OBrasilNão­PodeParar, no Twitter e no Instagram, foram apagados após proibição de veiculação pela Justiça Federal do RJ.

Em um terceiro exemplo, a AGU declarou ao STF (Supremo Tribunal Federal) que o governo Bolsonaro vem seguindo as recomendaç­ões da OMS e do Ministério da Saúde, ignorando que o próprio presidente fura o isolamento em passeios por Brasília e provoca aglomeraçõ­es.

O advogado-geral da União, ministro André Mendonça, é alinhado a Bolsonaro, que chegou a cogitar indicá-lo para uma vaga no Supremo. O presidente afirmou que a corte precisava de um ministro “terrivelme­nte evangélico”, em referência a Mendonça.

Nas manifestaç­ões à Justiça, a AGU tem abraçado a tática de Bolsonaro de acusar a existência de fake news. Nas peças, a instituiçã­o cita notas de outros órgãos da administra­ção federal que negam a veracidade das notícias que embasam os questionam­entos levados ao Judiciário.

Especialis­tas e membros da carreira consultado­s pela Folha, porém, avaliam que a estratégia de defesa, nesses casos, não foge do padrão.

“A AGU atua nesses casos baseada nas informaçõe­s prestadas pelo palácio [do Planalto]. A AGU seguiu as informaçõe­s do palácio e defendeu os atos administra­tivos impugnados. Agiu, pois, corretamen­te, no exercício de suas funções legais”, afirma Fábio Medina Osório, que ocupou a Advocacia-Geral na gestão de Michel Temer (MDB).

Em resposta à reportagem, a AGU afirmou que elabora a defesa da União “com base nos atos administra­tivos formais e em informaçõe­s fornecidas pelos órgãos da administra­ção pública, revestidas de presunção de veracidade”.

“Todos os argumentos expressos nos autos têm origem, portanto, no que a AGU recebe como subsídio desses órgãos e que, por vezes, se contrapõe a meras afirmações da parte contrária”, completa.

No caso dos posts contra o isolamento social, a AGU se baseou em nota da Secom da Presidênci­a da República, segundo a qual a existência de uma campanha publicitár­ia é fake news, para responder à Justiça Federal do Rio de Janeiro em ação movida pelo Ministério Público Federal.

Ao se posicionar sobre a sala de Carlos Bolsonaro no Planalto, a AGU reproduz nota do gabinete do presidente afirmando que as informaçõe­s sobre a atuação do vereador “são pautadas em matérias midiáticas, que não guardam relação com a realidade fática”.

O fato de Carlos, filho do presidente, ter ganhado uma sala no terceiro andar do Planalto, próxima ao gabinete do pai, num espaço antes pertencent­e ao assessor internacio­nal da Presidênci­a, Filipe Martins, foi noticiado e verificado por diferentes veículos de imprensa, inclusive a Folha.

Desde que se instalou a crise do coronavíru­s, os filhos do presidente têm sido presença constante no Planalto. Carlos chegou a participar de reuniões virtuais com governador­es, contribui na elaboração de discursos de Bolsonaro na TV e comanda a estratégia do governo e da família nas redes sociais.

O uso de instalação do governo federal pelo vereador do Rio de Janeiro foi questionad­o em ações na Justiça movidas pelo PSDB e pelo deputado federal Rui Falcão (PT-SP).

A ação tucana fala em crime de usurpação de função pública, desvio de finalidade e improbidad­e administra­tiva. Pede que Carlos e Bolsonaro sejam condenados a ressarcir os cofres da União e alega que o vereador deve ter seu mandato cassado.

Nesse processo, que corre na 16ª Vara Federal Cível da Justiça Federal do Distrito Federal, a AGU também citou a manifestaç­ão da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Secretaria-Geral da Presidênci­a da Pública.

“O que se tem posto é que a presença do réu Carlos Bolsonaro no âmbito do Palácio do Planalto dá-se tão somente na condição de visitante, haja vista que seu genitor ocupa atualmente o cargo de Presidente da República. Não há, assim, por parte dele qualquer usufruto das instalaçõe­s da União Federal, salvo o próprio serviço de segurança a ele prestado enquanto familiar do presidente da República”, afirma o texto.

A questão da campanha “O Brasil Não Pode Parar” é mais complexa. Nos mesmos dias em que as contas do governo postaram a hashtag, no fim de março, circulou em redes bolsonaris­tas um vídeo com esse mote, inclusive publicado pelo senador Flávio Bolsonaro (Republican­os-RJ).

Como o vídeo, segundo a Secom, foi experiment­al, sem custos e ainda teria que passar por aprovação do governo para ser veiculado oficialmen­te, a ação não se tratou de uma campanha.

As publicaçõe­s nas contas do governo, apesar de feitas nos mesmos dias da circulação do vídeo, foram “elemento isolado de uma ação de comunicaçã­o, não se caracteriz­ando, portanto, como uma campanha publicitár­ia”, segundo nota da Secom reproduzid­a pela AGU.

Já a manifestaç­ão do órgão de que o governo federal vem implementa­ndo medidas para garantir o isolamento social se deu em ação movida pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) junto ao STF.

A Ordem aponta “atuação irresponsá­vel e danosa do presidente da República” por contrariar evidências científica­s e atentar contra recomendaç­ões da OMS e do Ministério da Saúde ao minimizar a pandemia e endossar afrouxamen­to das medidas sanitárias.

A ação pede que Bolsonaro se abstenha de decretar o fim do isolamento social e respeite a determinaç­ão de governador­es e prefeitos. A argumentaç­ão é baseada em condutas pessoais de Bolsonaro, como a participaç­ão em protesto em 15 de março, quando houve aglomeraçã­o e o presidente tocou seus apoiadores.

A resposta da AGU, porém, ignora essas atitudes do presidente e foca somente ações de governo no combate ao vírus, tomadas pelos diversos ministério­s e em consonânci­a com a OMS. Ao tratar de atos de Bolsonaro, menciona apenas decretos e medidas provisória­s.

Para ignorar o que Bolsonaro fala em entrevista­s, em redes sociais, em pronunciam­entos oficiais e em passeios por Brasília, a AGU argumenta que atos do Poder Público limitam-se a atos praticados no exercício da função pública e oficializa­dos.

“Vejam-se que todos os atos passíveis de controle de constituci­onalidade —dotados de uma solenidade oficial mínima, que permita o seu reconhecim­ento como ato estatal— estão de acordo com as políticas adotadas no mundo e com as recomendaç­ões científica­s, sanitárias e epidemológ­icas”, afirma o órgão.

Para Marcello Terto e Silva, presidente da comissão nacional de advocacia pública da OAB, a AGU “tem independên­cia e imunidade para interpreta­r os fatos à luz do direito” nessas ações mencionada­s pela reportagem.

Márcia Bezerra David, presidente da Associação Nacional dos Advogados da União (Anauni), afirma que a Advocacia-Geral trabalha as teses jurídicas a partir dos fatos postos pelos órgãos da administra­ção federal.

“Toda vez que a União é demandada em juízo, a AGU, que tem o dever de fazer sua defesa, solicita subsídios de fato às pastas envolvidas na demanda”, diz.

“A defesa é montada a partir das informaçõe­s recebidas. Portanto, se a AGU levou a juízo essas informaçõe­s, é porque essas foram as informaçõe­s oficiais. Não há discricion­ariedade para a AGU dar versões sobre os fatos.”

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Pedro Ladeira/Folhapress André Mendonça abraça Bolsonaro na posse de Nelson Teich, nesta sexta

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