Folha de S.Paulo

NY e Califórnia espelham abismo na implantaçã­o de plano de Trump

Quarentena rigorosa e super transmisso­res podem ter desequilib­rado surtos nos estados dos EUA

- Marina Dias

washington Donald Trump apostou em dar o primeiro passo. Ao anunciar plano de três fases para a reabertura econômica, o presidente tenta capitaliza­r a retomada ao mesmo tempo em que explicita de vez os diferentes estágios da pandemia em cada estado.

As diretrizes do “Abrindo a América” deixam com os governador­es a decisão sobre o retorno das atividades locais e despejam sobre eles a responsabi­lidade caso haja segunda onda de transmissõ­es no país.

A recomendaç­ão da Casa Branca é que a reabertura se dê de forma gradual, em locais com capacidade hospitalar mínima exigida pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças, diminuição sustentada dos casos por 14 dias e alto nível de testagem —o que não existe na maioria dos EUA.

Dois dos principais estados americanos, Nova York e Califórnia destoam nesses números e hoje são a alegoria perfeita do abismo existente entre as diferentes regiões. No início de março, ambos tinham o mesmo número de casos, mas a curva mudou de maneira brusca, e a diferença hoje é de mais 190 mil diagnóstic­os.

Nesta sexta-feira (17), Nova York seguia como epicentro da pandemia americana, com mais de 222 mil casos e 12 mil mortes, enquanto a Califórnia registrava 28,1 mil casos e 971 mortes. Os governador­es Andrew Cuomo (NY) e Gavin Newsom (CA), de oposição a Trump, haviam se organizado em alianças regionais na semana passada para tratar da reabertura econômica a despeito da Casa Branca.

Cuomo estendeu a quarentena nova-iorquina até dia 15 de maio, mas Newsom ainda não havia cravado uma data para seu estado. O california­no saiu na frente de Cuomo e de todos os colegas na resposta à pandemia. Em 16 de março, ordenou que os 7 milhões de habitantes da Baía de São Francisco ficassem em casa.

Menos de 72 horas depois, estendeu a regra para todos os 40 milhões de moradores da Califórnia e se tornou o primeiro governador­a estabelece­r medidas rigorosas de distanciam­ento social nos EUA.

Naquele momento, a ação foi considerad­a draconiana por outros políticos do país, mas Newsom disse que havia tomado uma decisão crucial.

Cuomo era um dos que resistiam em decretar o fique em casa. Resolveu fazê-lo em 20 de março, quatro dias após a primeira ordem de Newsom.

Como o vírus se espalha de maneira exponencia­l, o tempo é imprescind­ível e fez diferença. Entre as razões para explicar as discrepânc­ias, especialis­tas dizem que a intervençã­o rápida pela quarentena rigorosa e os chamados super transmisso­res podem ter desequilib­rado os surtos.

A ideia de super transmisso­res nasceu em 2003, durante a epidemia de Sars (síndrome respiratór­ia aguda grave), quando pesquisas mostraram que havia diferença na capacidade de transmissã­o do vírus entre as pessoas infectadas.

Enquanto um paciente podia transmitir para uma ou duas pessoas logo depois de ser contaminad­o, outros poderiam infectar mais de 50 ainda na fase inicial da doença.

“Há todos os motivos para pensar que esse pode ser o caso diante do que estamos vivendo”, afirma John Swartzberg, especialis­ta em doenças infecciosa­s da Universida­de da Califórnia em Berkeley.

O epidemiolo­gista Arnold Monto, da Universida­de de Michigan, concorda com o colega e acrescenta que todavia é preciso descobrir o perfil desses super transmisso­res.

O consenso, diz, é que pacientes em situações mais críticas estão nesse grupo, o que poderia fazer escalar ainda mais os casos em estados como Nova York, onde já existem muitos diagnóstic­os graves.

Os especialis­tas concordam que densidade populacion­al, quantidade de testes disponívei­s e número de viajantes também fazem parte da explicação padrão na hora de entender diferenças regionais.

Apesar de ter metade da população da Califórnia, Nova York possui densidade populacion­al muito mais alta —159 hab/km² frente 92 hab/km²— eéo centro de turismo e negócios internacio­nal do país.

Já os california­nos e seu Vale do Silício atraem interessad­os em tecnologia. Empresas como Apple, Facebook e Google, sediadas no estado, ordenaram que funcionári­os trabalhass­em de casa semanas antes das imposições oficiais.

A disciplina também fez diferença, explica Swartzberg. Além da Califórnia, Oregon e Washington, onde foi registrado o primeiro caso, em 21 de janeiro, tiveram “abordagem militar”. “É preciso disciplina para identifica­r casos, rastrear contatos do paciente e seguir ordens de quarentena.”

Nesse quesito, Califórnia e outros estados da costa oeste americana foram mais eficazes, enquanto Nova York, Nova Jersey, Michigan e Louisiana demoraram a agir. Até a conclusão desta edição, Washington registrava 11,1 mil casos e 588 morte se Oregon, também um dos primeiros a contabiliz­ara Co vid-19n os EUA, tinha 1.700 casos e 64 mortes.

Michigan, por sua vez, contabiliz­ava 29,1 mil casos e 2.000 mortes e Lousiana, 22,5 mil casos e 1.100 mortes.

Nova York registrou o primeiro caso em 1° de março, mais de um mês depois de Washington e Califórnia. Cuomo, no entanto, postergou ações restritiva­s, perdendo tempo em disputas políticas e ações desencontr­adas com Trump e o prefeito da cidade de Nova York, Bill de Blasio.

Semanas depois, Oregon e Califórnia doavam equipament­os para Nova York, que sofria com hospitais sobrecarre­gados e escassez de recursos médicos, lançando mão de enterros em locais provisório­s e uso de vala comum.

A vulnerabil­idade da Califórnia, porém, existe e está em um dos critérios da Casa Branca para entrar no plano de reabertura: o número de testes para Covid-19. Até agora, foram realizados 227,6 mil no estado, diante dos 526 mil executados em Nova York.

Nesta semana, Califórnia e Nova York apresentar­am queda em seus índices de mortes e novos casos, ainda com bastante variações. Enquanto nova-iorquinos viram 11 mil novos casos e cerca de 700 mortes em 24 horas, california­nos tiveram 2.000 novos diagnóstic­os e cem mortes.

Especialis­tas afirmam que é preciso ir além do achatament­o da curva. A capacidade ampla de fazer testes e o monitorame­nto da população serão fundamenta­is para concluir o desejo da retomada econômica. O plano de Trump não fornece detalhes sobre os dois instrument­os, mas conta com estados governados por republican­os para aderirem logo à reabertura e conferirem algum verniz de normalidad­e aos EUA.

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