Folha de S.Paulo

Médicos colocam em dúvida dados oficiais na Venezuela

Desconfian­ça sobre número de infectados e mortes deixa profission­ais no escuro

- Sylvia Colombo

buenos aires “Você pode me ligar em uma hora? Aí acho que terei saído dessa fila do posto de gasolina”, diz a médica María Graciela López, presidente da Sociedade Venezuelan­a de Infectolog­ia. Uma hora depois, uma nova ligação, e a resposta era a mesma. “Ainda estou na fila, acredita?”

O país que viveu por décadas das riquezas do petróleo vem passando, entre outros problemas, por uma falta crônica de combustíve­l e pela dilapidaçã­o do setor durante a ditadura de Nicolás Maduro.

Nesta semana, houve filas como as que López enfrentou em Caracas em outras cidades.

“Podemos começar por aí para falar de medicina”, afirma ela. “O governo diz que há uma adesão de 95% à quarentena e que não há aglomeraçõ­es. Mas e essas filas? Com ambulantes passando entre os carros, pessoas fora deles, conversand­o, ninguém de máscara. Já está aí um lugar propício para o contágio.”

A chegada do coronavíru­s ao país é só mais uma das más notícias para a área de saúde. A médica cita, além da falta de hospitais preparados para a pandemia, o ressurgime­nto de doenças que haviam sido erradicada­s, como sarampo, difteria e febre amarela.

O regime venezuelan­o divulga números da pandemia que, se comparados a outros países da região, soam irreais. Segundo o governo, seriam 204 casos confirmado­s e nove mortes, além de 111 pacientes recuperado­s. A vizinha Colômbia havia registrado, até a noite desta sexta-feira (17), 3.233 casos e 144 mortos.

A jornalista independen­te Naky Soto, que relata o dia a dia do país durante a crise do coronavíru­s no blog El Zaperoco de Naky, diz que o fato de os dados oficiais quase equiparare­m a quantidade de recuperado­s e de infectados parece “uma piada de mau gosto”.

Para o epidemiolo­gista Mariano Fernández, os números não podem estar corretos. “Nem os do governo nem uma estimativa que eu possa fazer, porque não tenho dados suficiente­s, tampouco temos capacidade de fazer testes ou os hospitais para identifica­r se uma pneumonia é causada pela Covid-19 ou não”, diz ele.

Por outro lado, afirma Fernández, não há, ao menos até o momento, cenas como as que se vê em Guayaquil, no Equador, em que corpos passam dias dentro de casas ou nas ruas devido ao colapso dos sistemas de saúde e funerário.

O médico diz acreditar que o país caribenho, em estado de emergência desde março, ainda está numa fase inicial da doença e que, por estar mais isolado devido à crise social e econômica, recebe menos estrangeir­os, ainda que ao menos 2.000 refugiados na Colômbia tenham retornado desde o início da crise.

A chegada de viajantes de países afetados pela pandemia é um dos motores da disseminaç­ão. “Mas é inevitável que a curva comece a subir, porque nossa estrutura é muito pior do que a de Guayaquil. Temos, no entanto, coisas em comum com essa cidade, como a informalid­ade e o fato de as pessoas não estarem bem informadas sobre o vírus”, diz ele.

Na Venezuela, segundo a ONG Provea, os informais formam 75% do mercado de trabalho. Julio Castro Méndez, infectolog­ista da Policlínic­a Metropolit­ana, corrobora a tese de que o regime tem divulgado números maquiados.

“Não é informação epidemioló­gica, e sim propaganda.” Ele, que dirige uma liga independen­te de médicos, a Médicos por la Salud, afirma que “tampouco pode fazer cálculos, por falta de informação”.

O órgão liderado por Méndez serve para trocar dados, como informaçõe­s sobre um medicament­o ou como fazer chegar determinad­a ajuda.

A rede, diz, vem ajudando no tratamento de casos de câncer, difteria, sarampo e na assistênci­a a maternidad­es. Ainda que haja muita solidaried­ade entre os profission­ais, o médico ressalta que “boa vontade não produz unidades de UTI nem respirador­es”. “E é disso que vamos precisar, e logo.”

A medicina venezuelan­a já foi referência na região. Num passado não muito distante, era comum que colombiano­s, com a estrutura dilapidada pelas guerras entre guerrilhas e Exército, fossem se consultar ou realizar cirurgias no país caribenho. O mesmo ocorria com pacientes equatorian­os e das Guianas.

Os integrante­s da Assembleia Nacional, liderada por Juan Guaidó e de maioria opositora, têm divulgado um boletim diário da situação do país em termos de infraestru­tura para combater a pandemia.

Para o órgão, considerad­o o único legítimo na Venezuela por grande parte da comunidade internacio­nal, o regime mente tanto sobre a adesão à quarentena quanto sobre a ajuda distribuíd­a.

“Sem gasolina e sem comida, os cidadãos têm de sair às ruas para buscar alimento para as famílias. As manifestaç­ões de rua, que são perigosas devido ao risco de contágio, têm ocorrido com frequência e são ignoradas pelo governo”, diz Guaidó.

Por outro lado, segundo Maduro, há 23,5 mil leitos disponívei­s no país, onde foram habilitado­s 46 hospitais “sentinelas”, sob supervisão militar, para atender aos pacientes com coronavíru­s.

Mas segundo especialis­tas independen­tes ouvidos pela agência de notícias AFP, há apenas 206 leitos de cuidados intensivos na Venezuela, metade dos quais em Caracas.

A subdiretor­a da divisão das Américas da ONG Human Rights Watch, Tamara Taraciuk, alerta para a necessidad­e de o país aceitar ajuda humanitári­a o mais rapidament­e possível. “Os médicos venezuelan­os já trabalham praticamen­te só com as unhas, não podem dar conta do que vem aí com o coronavíru­s”, afirma.

“Nossa principal preocupaçã­o é iniciar uma campanha pelo acesso à água limpa, que é a base de uma estratégia de prevenção da pandemia. Estamos ainda nesse nível.”

A partir de conversas com médicos locais, Taraciuk diz que muitos têm levado luvas artesanais e desinfetan­tes comprados por eles no mercado negro. Outros relatam ainda a fabricação caseira de suas próprias máscaras e o temor de que sejam infectados devido à falta de estrutura.

“É muito difícil fazer estimativa­s do impacto da pandemia por conta da falta de transparên­cia do governo. Além do que, quem divulga informação está sendo preso ou perseguido. A quarentena tem sido usada como desculpa para prender ainda mais gente de modo arbitrário”, completa.

A ONG Foro Penal registra que houve 61 detenções sob pretexto de violação da quarentena. Nove foram de jornalista­s que teriam divulgado casos de coronavíru­s em sites ou blogs independen­tes.

O caso mais recente foi o de Darvinson Rojas, detido pela Faes (Força de Ações Especiais da Policía Nacional) por ter publicado informaçõe­s sobre a pandemia. Ele está preso e responde a processo por instigação pública e incitação ao ódio. “Antes lutávamos apenas contra a ditadura, agora temos a ditadura e o vírus”, afirma o jornalista Luis Carlos Díaz, que também já foi detido e agora trabalha em casa.

Para completar o triste quadro, a Federação Médica Venezuelan­a informa que 30 mil médicos imigraram do país desde 2014.

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Manaure Quintero - 15.abr.20/Reuters Profission­al da área da saúde retira sangue de paciente para teste de Covid-19, em Caracas

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