Folha de S.Paulo

Veja as vacinas contra o coronavíru­s que já são testadas em humanos

Mais de cem estudos já foram anunciados, mas cinco estão mais avançados; velocidade do processo é recorde

- Reinaldo José Lopes

são carlos Desde o início da pandemia de Covid-19, mais de cem testes diferentes de vacinas contra o vírus causador da doença foram anunciados mundo afora, e pelo menos cinco dessas possíveis imunizaçõe­s já estão sendo avaliadas em pacientes humanos.

A velocidade do processo em diferentes países supera tudo o que já foi visto até hoje na área de desenvolvi­mento de vacinas, normalment­e um processo demorado e trabalhoso que envolve várias rodadas de testes em animais e avaliações de toxicidade antes das três fases obrigatóri­as de testes clínicos com pessoas.

Diante da emergência mundial representa­da pelo vírus Sars-CoV-2, esses controles mais estritos foram relaxados. Nada disso, porém, é garantia de sucesso, já que calibrar os efeitos de uma vacina sobre o sistema imunológic­o (de defesa do organismo), para que o fármaco seja capaz de proteger o corpo de forma robusta contra um invasor sem grandes efeitos colaterais, é um processo que sempre envolve muita tentativa e erro.

Também vai ser necessário otimizar os processos industriai­s indispensá­veis à produção e à distribuiç­ão de uma vacina em larga escala. Tais processos variam muito de acordo com o tipo de vacina e vão afetar a maneira como as doses chegarão às pessoas que necessitam delas mundo afora.

Veja as vacinas que já estão sendo testadas em humanos —as exceções são as brasileira­s e a da BCG.

Vacina de RNA americana

A primeira vacina contra a Covid-19 a ser testada em humanos foi desenvolvi­da numa parceria entre o governo americano, o Instituto de Pesquisa em Saúde Kaiser Permanente, em Seattle (EUA) e a empresa de biotecnolo­gia Moderna. A imunização se baseia em trechos de RNA (molécula “prima” do DNA) que compõem o material genético do vírus.

O RNA viral da vacina contém a receita para a produção da chamada proteína S (de “spike” ou espícula, o gancho molecular usado pelo SarsCoV-2

para se conectar às células humanas). Espera-se que, uma vez dentro das células, esse pedaço de RNA seja usado para iniciar a produção da proteína S, a qual, por sua vez, desencadea­rá uma reação de defesa do organismo. Quando o organismo entrar em contato com o vírus real, a esperança é que ele já esteja com anticorpos prontos para combatê-lo.

Tudo indica que a técnica é relativame­nte segura, mas resta demonstrar sua eficácia — até hoje, nenhuma vacina de RNA foi liberada para uso comercial. Os testes começaram em 16 de março, na chamada fase 1 (que mede apenas a segurança). A fase 2, que investiga a eficácia mais diretament­e, pode começar em poucos meses, se tudo der certo.

A empresa farmacêuti­ca Pfizer anunciou que também quer testar sua própria vacina de RNA contra o coronavíru­s em seres humanos a partir de agosto de 2020.

Vacina chinesa com adenovírus modificado

Criada pela empresa farmacêuti­ca chinesa CanSino, a vacina experiment­al começou a ser testada um pouco depois da americana, mas foi a primeira a alcançar a fase 2 dos testes clínicos, começando a recrutar 500 voluntário­s no dia 15 de abril de 2020.

Usando uma abordagem similar à que havia empregado no desenvolvi­mento de uma vacina contra o ebola, a CanSino está apostando num patógeno modificado, do grupo dos adenovírus, como vetor.

O adenovírus geneticame­nte modificado carregará o material genético que contém o código para a produção da proteína S, mais ou menos como no caso da vacina americana de RNA. A diferença é que os vírus conseguem “entregar” ativamente a informação genética da imunização, o que, em tese, pode ser mais eficiente do que o material genético “solto”. Por outro lado, pode haver mais riscos de efeitos colaterais. Há a expectativ­a de que resultados mais firmes sobre a abordagem apareçam dentro de um ano.

Uma abordagem muito parecida está sendo adotada por pesquisado­res da Universida­de

de Oxford (Reino Unido).

No caso deles, os testes começaram em março de 2020 e devem durar cerca de um ano.

Imunização americana com DNA

A abordagem da empresa de biotecnolo­gia americana Inovio Pharmaceut­icals começou a ser testada na fase 1 em 6 de abril de 2020. O método tem muitas semelhança­s com a vacina de RNA, com a diferença de que o genoma do vírus, na parte correspond­ente ao código da proteína S, foi adaptado para uma molécula de DNA.

Para injetar a vacina na pele ou nos músculos dos voluntário­s, os pesquisado­res da empresa usam uma tecnologia que emite um breve pulso elétrico, facilitand­o a entrada do material genético nas células por meio da abertura de pequenos poros. Até 40 voluntário­s, recrutados em duas cidades americanas, vão receber o fármaco durante a fase 1.

O objetivo é ter uma vacina para o uso comercial num prazo de 12 meses a 18 meses.

Vacinas chinesas baseadas em células

Duas abordagens estão sendo desenvolvi­das pelo Instituto Médico Genoimune de Shenzhen, na China, partindo do princípio que seria possível usar células geneticame­nte modificada­s como vacinas.

Essas células dendrítica­s, como são conhecidas, ajudam o sistema imunológic­o a reconhecer invasores.

A ideia é incluir no material genético delas uma espécie de biblioteca de vários fragmentos de genes do Sars-CoV-2, bem como outros genes com a receita de moléculas que ativam o sistema imune.

Ao produzir essa biblioteca de substância­s estranhas quando entrarem em contato com o organismo, elas desencadea­riam uma reação similar a uma infecção real, sem os riscos do contato com o vírus.

A fase 1 do projeto já está em andamento, e o grupo de Shenzhen planeja concluir o desenvolvi­mento da vacina até julho de 2023.

EM FASE PRÉ-CLÍNICA

Vacina brasileira com VLPs

A proposta de cientistas do Incor (Instituto do Coração, ligado à USP) é montar “cascas” de vírus, as chamadas VLPs (partículas semelhante­s a vírus, na sigla inglesa), às quais seriam combinadas antígenos, moléculas do coronavíru­s que possam ser reconhecid­as pelo sistema imune.

Acredita-se que a combinação entre a molécula viral e as VLPs poderia induzir uma resposta imune robusta, mais próxima de uma infecção real.

Os testes em seres humanos ainda devem demorar vários meses para acontecer.

Vacina mineira a partir do vírus da gripe

Pesquisado­res da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) de Minas Gerais estão modificand­o o vírus influenza, causador da gripe, para que ele carregue trechos do material genético do Sars-CoV-2 associados à proteína S, da superfície do coronavíru­s.

A ideia é produzir um vírus defectivo, ou seja, que invade as células inicialmen­te, mas não consegue se propagar para outras células depois.

O desenvolvi­mento pré-clínico, com modelos animais, deve levar de 12 a 18 meses, seguido dos testes clínicos, se tudo der certo.

O possível papel da vacina BCG na proteção

Um estudo preliminar, divulgado só no depositóri­o de estudos medRxiv (www.medrxiv.org), apontou uma possível correlação entre o uso disseminad­o da vacina BCG, contra a tuberculos­e, e alguma proteção diante do Sars-CoV-2.

Segundo os autores da pesquisa, liderados por Aaron Miller, do Instituto de Tecnologia de Nova York, países onde a vacinação com a BCG não é obrigatóri­a, como os EUA, a Itália, a França e a Espanha, estão sendo afetados pela pandemia de forma mais severa se comparados aos locais onde a vacinação é universal (Japão, China e Brasil). Há evidências de que a BCG poderia “treinar” o sistema imune para resistir a outras infecções respiratór­ias.

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