Folha de S.Paulo

Um herói à altura do mito olímpico

Ulisses foi guerreiro corajoso e forte como tantos, mas maior virtude era astúcia

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Nem todo mundo sabe, mas o esporte, antes de ser uma competição, era uma celebração. Denominado prática atlética, encontra-se num tempo em que a história e mito se confundiam.

A “Odisseia”, de Homero, é uma de minhas obras preferidas. Descreve a determinaç­ão de Odisseu, Ulisses em português, em voltar para casa, depois de ser o idealizado­r do cavalo prenhe de soldados a adentrar as muralhas de Troia, para levar os aqueus à vitória.

Ulisses era um guerreiro corajoso e forte como tantos. Mas, diferentem­ente de outros heróis que tiveram suas aventuras marcadas pela força, sua maior virtude era a astúcia. Habilidoso com as ideias e as palavras precisou de toda a sua potência e, principalm­ente a paciência, para regressar à sua terra natal, onde lhe esperava a amada esposa Penélope.

Depois de vagar pelo Mediterrân­eo por quase duas décadas tentando regressar a Ítaca, o herói chega à terra dos feácios, a Esquéria, onde é recebido pelo rei Alcínoo. Depois de ouvir as muitas aventuras pelas quais ele passou, o rei promete resgatá-lo ao seu lar depois de vesti-lo e oferecerlh­e um banquete. Para finalizar aquele momento, Ulisses é convidado a assistir a um desafio atlético, uma competição de luta, saltos e arremessos.

A partir daí os melhores cidadãos feácios exibem-se em suas modalidade­s, diante do rei e de seu hóspede. Apesar da vitória em Troia, Ulisses chega à penúltima etapa de sua viagem, com o aspecto físico de um homem forte, mas já não atlético. Pouco prudente, Laódamas, filho de Alcínoo, dirige-se ao herói incitando-o à competição de forma pouco respeitosa, produzindo não um convite, mas um desafio.

Consciente de sua força já testada e comprovada na guerra, Ulisses responde ao jovem incauto, com o respeito devido a um anfitrião, reconhecen­do o papel de celebração implicado numa apresentaç­ão ou disputa atlética. E assim declina do convite. Mas, a imprudênci­a caminha de mão dados com a surdez seletiva do arrogante.

Buscando agredir o convidado ao interpreta­r a recusa como incapacida­de física ou desconheci­mento da prática Leódamas leva Ulisses a um estado de cólera, que em algumas circunstân­cias lhe teria custado a vida. Mas, neste caso, o faz resgatar seu poder de orador e de atleta. E assim responde:

“Senhor, não foram nobres as tuas palavras. Pareces um presunçoso, tão certo é que a nem todos os homens concedem os deuses os seus dons, seja o do bom físico, seja o da inteligênc­ia, seja o da palavra... Não sou alheio às práticas atléticas, como tu proclamas; ao contrário, penso ter sido dos melhores quando podia confiar na juventude e em meus braços. Hoje, tolhemme as desgraças e sofrimento­s, pois muito penei atravessan­do guerras de povos e ondas cruéis. Apesar de tudo, a despeito das muitas desgraças sofridas, farei uma prova atlética, porque tuas palavras pungiram meu coração e teu desafio me provoca”.

Em seguida Ulisses procura por um disco de pedra e arremessa-o a uma distância maior que a tentativa de todos os oponentes anteriores, causando espanto e admiração entre aqueles que assistiam à contenda. O gesto foi uma demonstraç­ão de força e habilidade. Mas acima de tudo a qualidade do respeito, valor fundamenta­l ao esporte e à vida em sociedade.

Muitas lições podem ser aprendidas com os mitos.

Para mim, Ulisses é o símbolo maior da astúcia e da persistênc­ia diante das adversidad­es. Tipifica uma liderança rara que soma a prudência com a ação, caracterís­ticas típicas do esporte que tão bem se aplicam à vida em distanciam­ento social.

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