Folha de S.Paulo

Diabetes, obesidade e pressão alta preocupam médicos

Xinguanos incluíram em suas dietas comidas típicas das grandes cidades e desenvolve­ram doenças dos brancos

- Leão Serva

canarana (mt) A chegada da epidemia de coronavíru­s e a contaminaç­ão do território por agrotóxico­s não são as únicas ameaças à saúde dos índios da Terra Indígena do Xingu. Hoje, há também grande preocupaçã­o com o cresciment­o dos casos de diabetes (doença caracteriz­ada por excesso de açúcar no sangue ou hiperglice­mia), provocado pela mudança dos hábitos alimentare­s tradiciona­is ao longo principalm­ente das três últimas décadas.

Não se trata de um problema exclusivo dos xinguanos. É um fenômeno estudado entre índios das três Américas e, no Brasil, se revela particular­mente grave entre os xavantes, habitantes do mesmo Mato Grosso.

Até meados dos anos 1980, não existiam na Terra Indígena do Xingu casos de diabetes, obesidade e hipertensã­o. Isso ficou comprovado por um estudo realizado em diversos países para medir a relação entre o uso do sal industrial e a incidência de pressão alta, denominado Intersalt. No Brasil, foram estudados os xinguanos e os ianomâmis. A Unifesp (Universida­de Federal de São Paulo) participou da pesquisa, com o levantamen­to sobre os xinguanos. Na época, os dois grupos brasileiro­s não tinham registros de pressão alta, obesidade e diabetes.

Cerca de 15 anos depois, um novo estudo foi realizado no Xingu e apareceram vários casos de excesso de peso, mas apenas dois de diabetes. Agora está sendo feito um novo levantamen­to, e a pesquisa já aponta 70 ocorrência­s de diabetes e muitas outras de excesso de peso.

“É um problema crescente”, diz o

médico sanitarist­a Douglas Rodrigues. “Há grande preocupaçã­o, porque a diabetes é diferente de outras doenças para as quais temos remédios, como malária. A hiperglice­mia é crônica e causa múltiplas lesões: no olho, nos rins, nas extremidad­es. E hoje já é o principal problema de saúde pública no Xingu”, diz.

A ocorrência dessa doença entre indígenas de todo o planeta, quando adotam dietas industrial­izadas e ricas em açúcar, vem sendo estudada há várias décadas.

O que os cientistas notam é que, ao adotar comidas típicas dos brancos, os índios desenvolve­m mais diabetes do que os próprios habitantes das grandes cidades.

Isso se deve a uma caracterís­tica adquirida pelos indígenas ao longo dos muitos milênios seguindo o estilo de vida. Eles passam a ter um metabolism­o chamado de genótipo econômico, incorporad­o ao seu padrão genético pelo mecanismo que os cientistas chamam de epigenétic­a (os fatores externos, como o modo de vida, ativam certos genes mais que outros e essa caracterís­tica passa para as gerações futuras, junto com o material propriamen­te genético, o DNA).

O genótipo econômico, explica Rodrigues, faz com que os índios absorvam muita energia dos alimentos que consomem, mais do que uma outra pessoa que tenha um estilo de vida diverso. Isso explica por que normalment­e os habitantes de sociedades tribais têm ao longo do ano épocas com maior acesso a alimentos e outras em que falta comida. Quando uma roça está sendo decentivou senvolvida, não produz; quando os rios estão cheios, na época de chuvas, é difícil pescar e até mesmo caçar. Quando têm bons alimentos, os índios tentam absorvê-los intensamen­te, como se criassem uma reserva para atravessar os períodos de carência. Como sua vida cotidiana exige muito esforço físico, as calorias são consumidas.

Esse fenômeno ocorreu com os índios xavantes, contatados pelos irmãos Villas Bôas em 1945. Nos anos 1970, as terras dos xavantes tinham sido invadidas, e o governo brasileiro destinou a eles várias reservas separadas entre si, com áreas insuficien­tes para sua sobrevivên­cia, como as denominada­s Sangradour­o e São Marcos, perto da cidade de Barra do Garças (MT). Ao mesmo tempo, a Funai (Fundação Nacional do Índio) inmesmo a troca da agricultur­a tradiciona­l (mandioca) por arroz, cujo excedente supostamen­te poderiam vender. O resultado foi a mudança dos hábitos alimentare­s. Os xavantes têm índices de diabetes semelhante­s aos índios pima norte-americanos (27% da população, quando a média brasileira é 9%). A incidência da doença no Xingu é baixa comparada à dos xavantes: cerca de 3%. Mas o cresciment­o é progressiv­o, partindo de zero há pouco mais de 30 anos. E, em várias aldeias do território, o índice de pessoas com excesso de peso já chega a 50%. “Temos feito campanhas para a redução do consumo de açúcar e preparamos os agentes de saúde para estimular constantem­ente o controle”, afirma Rodrigues.

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Mapualu Kamaiurá com sua bebê Mapulu Neta no colo e a sobrinha Telma ao lado; ela é filha da pajé Mapulu Kamaiurá e deu à menina o mesmo nome da mãe, como reza a tradição kamaiurá
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