Folha de S.Paulo

Líderes lutam para preservar cultura

Caciques e pajés tentam manter tradições com mais jovens e conservar seus território­s

- Leão Serva

canarana (mt) O Xingu entrou no imaginário brasileiro em meados do século 20, com a intensa cobertura pela imprensa da Expedição Roncador-Xingu, organizada durante o final do governo ditatorial do presidente Getúlio Vargas (1937-1945) para explorar o coração do país.

Logo se destacaram no noticiário três irmãos, jovens, corajosos e dedicados: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas.

Eles foram responsáve­is pela localizaçã­o e contato de uma longa lista de povos indígenas, dos xavantes, em 1946, aos krenhakaro­re, em 1973, passando por kalapalo, kamaiurá, suiá, txicão e dezenas de outros.

Ao chegarem à cabeceira do rio Xingu, nos anos 1950, os Villas Bôas reconhecer­am que seus habitantes eram os mesmos descritos pela expedição do etnólogo alemão Karl von den Steinen, no final do século 19. Mas os 3.000 indivíduos, divididos em cerca de 30 aldeias, estavam reduzidos a menos de 700.

As invasões de brancos e suas epidemias estavam extinguind­o aqueles índios.

Por conta disso, os três decidiram iniciar uma campanha pela criação do Parque Nacional do Xingu, uma reserva como ainda não havia no país.

Foram quase dez anos de tramitação do projeto até que, em 1961, o presidente Jânio Quadros decidiu criar o território por decreto, com 2,2 milhões de hectares, um décimo da proposta original.

Leonardo Villas Bôas morreu no mesmo ano de 1961, e seus irmãos foram incumbidos de dirigir a implantaçã­o do parque.

Orlando permaneceu no comando até 1978. Embora tenha se afastado há mais de 40 anos da função, ele até hoje é uma referência na memória dos líderes indígenas.

“O Orlando Villas Bôas falava para a gente: ‘Quando eu sair daqui, já demarquei a terra de vocês’. Foi assim que ele falou: ‘Agora, quem vai cuidar, lutar, são vocês. Vocês vão lutar para defender a terra de vocês daqui para o futuro, quando eu não estiver mais aqui’. Isso foi quando a cidade era muito longe”, lembra Afukaká Kuikuro, 64.

Hoje em dia, o cacique diz se preocupar muito com seu povo, sua tradição, com a terra e água da região, já que o desmatamen­to no Mato Grosso está aumentando.

“O rio Culuene está ficando cada vez mais baixo. Por que está ficando baixo? No ano de 2007, começou uma barragem para cima do rio, chamada Paranating­a 2. Ela está prejudican­do o rio. Quando chega na época seca, a gente não consegue mais andar de barco”, afirma.

“Nosso principal alimento é peixe, todos os povos do Xingu comem peixe. O que nós vamos comer quando a água estiver contaminad­a, como vamos nos alimentar aqui no futuro? O futuro dos meus netos será um sofrimento. Por isso estou lutando.”

O cacique diz não gostar do presidente Jair Bolsonaro e de suas recentes declaraçõe­s sobre os índios.

“Não gosto de seu pensamento, da posição dele. Ele tinha falado: ‘Não vamos demarcar terra indígena, vamos transforma­r eles, para ficarem como a gente, para eles começarem a plantar soja, milho, para se tornarem como a gente, ganhar sua própria renda’. Como nós vamos mudar nosso modo de viver?”, questiona.

“Nós, indígenas, donos da terra, primeiros donos do Brasil. Foi Taûgi (o deus Kuikuro) que fez nossa tradição, nossa música e nossa língua. Como o presidente pode querer obrigar a mudar nossa religião?“

Outra líder que reclama da ação do homem branco na região e que tenta preservar a cultura local é

Mapulu Kamaiurá, 52, primeira mulher a ser pajé em sua tribo. Seu pai era cacique e pajé, e ela segue o mesmo caminho.

“Quando eu era criança, chovia na época da chuva. Chovia muito, enchia. Nestes dias não, mudou muito o nosso clima. Este ano por exemplo, não está chovendo, está secando. Hoje, os fazendeiro­s, os madeireiro­s estão apertando muito a gente. Eles estão ameaçando. No ano passado, tocaram fogo lá nas fazendas e o fogo se espalhou. Queimou a medicina. Por isso, eu fico muito preocupada para que não se queimem nossos remédios, as coisas que a gente usa no nosso dia a dia”, fala.

A pajé lembra como a mitologia ligada à natureza é importante para os indígenas. “Os espíritos têm casa. Se queima muito a floresta, os espíritos fogem procurando sua casa. Onde tem muita mata, lá que os espíritos chegam, é lá que eles vivem. Se acabar com a floresta, os espíritos não têm mais onde ficar.”

Para o cacique Kotoki Kamaiurá,

59, manter a tradição cultural de seu povo, principalm­ente entre os jovens, é uma de suas lutas.

“O papel do cacique é levar coisas boas para a comunidade, conversar e ouvir. O jeito que eu vivo é a minha forma de ser. É assim que a gente deve continuar. Estou pedindo para os meus netos para não deixarem a nossa cultura”, diz.

“Antigament­e, no tempo do Rondon e do Orlando, eles gostavam, eles cuidavam do nosso território. Hoje, não, hoje a gente está sendo jogado, né? O governo mesmo não está nem aí para isso, não está valorizand­o que a gente está vivendo, cuidando da nossa floresta.”

Segundo o cacique, o rio Xingu está morrendo. “Praticamen­te não tem mais peixe, o rio está secando. Está difícil para nós. Não ganhamos nada com as barragens.”

Quando jovem, cacique Aritana deu nome a uma novela da TV Tupi

Há quatro décadas, quando era um jovem guerreiro, o cacique Aritana inspirou o nome de uma novela de grande sucesso na extinta TV Tupi.

Além de unir, em um romance que dura até hoje, os dois principais atores, Bruna Lombardi e Carlos Alberto Riccelli, a produção transformo­u em celebridad­e nacional o líder dos índios yawalapiti­s.

Antes da vivência mais intensiva dos xinguanos com o português, não havia uma língua comum para facilitar o contato entre as diferentes etnias. Crescia a influência dos índios que falavam várias das línguas do Xingu, como é o caso de Aritana. “Foi natural, para mim, aprender várias línguas”, conta.

Nascido em 1950, Aritana também reclama da diminuição dos peixes nos rios. “Hoje, quando precisamos pescar, é só nas lagoas.”

No centro de sua maloca típica da arquitetur­a xinguana, a mesa central divide o espaço entre o rádio, para comunicaçã­o com outros líderes locais, e uma grande panela de argila com mingau de farinha de mandioca misturada com pequi.

É um refresco que, tomado aos pouquinhos, ao longo do dia, funciona como um energético.

Mandioca e pequi são elementos fundamenta­is da culinária local. Cerca de 80% das calorias consumidas por um índio do Xingu vêm da mandioca.

Eles dominam 46 variedades, sendo todas elas “bravas” (naturalmen­te venenosas).

A semelhança cultural entre as diversas etnias do Alto Xingu homogeneiz­ou muitos costumes, mas algumas diferenças são marcantes.

Ao ver uma fotografia de Sebastião Salgado, que mostra um índio com um jacaré nas mãos, Aritana diz: “Deve ser um suiá. Você sabia que eles comem carne de jacaré?”, me conta como quem aponta uma caracterís­tica exótica dos outros. Você não come jacaré?, pergunto.

“Nós, yawalapiti­s, kamaiurás,

kalapalos, kuikuros, waurás, não comemos jacaré, nunca”, exclama, listando povos do Alto Xingu (leia mais à página 10).

Bruna Lombardi, 68, conta que só aceitou o convite para participar da novela de Ivani Ribeiro porque ela teria cenas rodadas no Xingu.

Na trama de 1978, ela interpreto­u a veterinári­a Estela Bezerra, por quem Aritana, filho de uma índia com um homem branco, se apaixonava enquanto tentava defender as terras no Xingu da exploração por fazendeiro­s. “A gente foi pra lá num momento em que os irmãos Villas Bôas tinham conseguido a demarcação das terras e era quase impossível visitar o Xingu”, diz.

A atriz conta que a equipe da produção ficou um mês na aldeia dos

yawalapiti­s, no Alto Xingu. “Ainda era uma época de muito pouco contato com os brancos, o que foi bom pra poder vivenciar a vida e o cotidiano nas ocas e a cultura real da tribo. Eu conheci o Ri [Carlos Alberto Riccelli] nesse paraíso terrestre em estado de total encantamen­to.”

Lombardi diz ter convivido muito com Aritana e ter tido uma boa identifica­ção com o cacique.

“Logo de cara senti que ele era um líder, alguém de alma nobre, um príncipe, e a gente ficou muito impression­ada com ele. Mesmo sem a gente entender o aruak, a gente falava português e eles entendiam muitas frases. Havia curiosidad­e de troca dos dois lados”, diz.

Ela relembra sua rotina na aldeia. “Fomos pescar com eles, participam­os das festas, brincamos com as crianças soltas na floresta e sempre felizes. Elas nos puxavam dizendo: ‘Vamo banhá?’, e iam correndo com a gente pra mergulhar”, fala. “Conviver com povos indígenas foi uma experiênci­a transforma­dora.”

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 ??  ?? Mayaru Kamaiurá molda o corpo com linhas e se pinta para festa das mulheres; abaixo, Rosana Kaitsalô Kamaiurá é pintada para a festa das mulheres, Yamurikumã
Mayaru Kamaiurá molda o corpo com linhas e se pinta para festa das mulheres; abaixo, Rosana Kaitsalô Kamaiurá é pintada para a festa das mulheres, Yamurikumã
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Homens usam máscaras yakuikatu (pronuncia-se ‘jacuícatu’) usadas em festas; a palavra significa ‘o bom pequeno jacu’, porque o acessório representa um ser sobrenatur­al ( jacu) oriundo das águas

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