Sistema cultural multiétnico foi criado há 2.000 anos
Índios trocam produtos e incorporam elementos de tribos distintas, em vez de realizar a antropofagia com guerras
canarana (mt) Cinco séculos antes de o coronavírus atingir o Brasil, o Xingu presenciou os efeitos da pandemia que dizimou os índios das Américas nas décadas posteriores à chegada dos europeus. Estima-se que 90% da população que existia entre a Terra do Fogo e o Panamá desapareceu antes de 1600. Não foi diferente no coração do país, mas não se sabe quais doenças foram responsáveis: varíola, sarampo ou gripe.
No século 18, outra onda de epidemias assolou a região. Foi por isso que os primeiros visitantes europeus, no fim do século 19, encontraram uma população de poucos milhares de pessoas que, por sua vez, foi ainda mais reduzida pelos contatos com fazendeiros e garimpeiros no início do século 20.
Não resta dúvida de que havia vastas concentrações de gente, a julgar pelos restos de 25 grandes cidades descobertas, cada uma organizada com uma cruz a dividi-las em quatro zonas e uma muralha de proteção.
Há cerca de 2.000 anos, o Alto Xingu
é cenário de um sistema de relacionamento entre povos de diferentes origens, que homogeneizou as culturas e estabeleceu uma forma de convivência estável e pacífica.
“Os vestígios mais antigos são de 2.000 e contêm muitos sinais que os ligam à cultura atual dos povos aruak (como os waurás), como a técnica das cerâmicas e a forma das aldeias”, diz o arqueólogo norte-americano Michael Heckenberger. “Há a hipótese de que os karibs tenham chegado na mesma época dos aruaks, mas não encontramos seus vestígios ainda”, explica ele.
Os grupos originários desses dois povos criaram um modo próprio de convivência em cidades.
Com a pandemia e o desastre demográfico, houve uma reorganização dos remanescentes. “Minha suposição é a de que após uma grande baixa demográfica, o sistema se recompôs com a fusão de diferentes grupos em aldeias menores”, diz o antropólogo brasileiro Carlos Fausto.
Segundo Fausto, os xinguanos estabeleceram padrões de integração e complementaridade econômica por intercâmbios de bens (os waurás fazem potes, panelas e fornos de argila; os kamaiurás, arco e flecha) e cultural (o Kuarup é originalmente kamaiurá, mas hoje todos participam e o mito de origem foi incorporado à mitologia de todos os outros). Também há similaridades arquitetônicas (as aldeias adotaram um padrão de origem aruak e, em seguida, karib).
Os xinguanos, ele diz, são povos que incorporam elementos culturais de outros povos e se integram mutuamente, em vez de realizar a antropofagia por meio de guerra, como fizeram os tupis/jês.
Outra coisa criada pelos xinguanos são as lagoas ao redor das aldeias. Estudos recentes mostram que, há muitos séculos, os lagos e as florestas são produtos da mão humana.
Os sinais do represamento original estão escondidos sob a terra ou a vegetação. Os “pequizais” e buritizais encontrados hoje são restos dos jardins das antigas cidades do Xingu.
Mitos explicam por que xinguanos não comem jacaré nem carne de caça
A dieta fundamental dos xinguanos é formada por peixes e mandioca. Poucos animais são caçados —e apenas na época das cheias, quando é mais difícil pescar.
As razões estão expressas nos mitos que organizam a vida indígena. Um deles associa os animais àquilo que comem. “Como o jacaré come peixes mortos e mesmo em putrefação, consumir esse animal seria a mesma coisa que comer essa comida”, o que contaminaria o sangue.
Da mesma forma, evitam as grandes caças, como veados e antas, porque caçá-los pode fazer seu caçador virar uma presa. “Matar o veado seria muito perigoso, porque seu espírito poderia vir se vingar e roubar a alma do caçador”, escreve o antropólogo Antonio Guerreiro no livro “Ancestrais e Suas Sombras”.