Folha de S.Paulo

Terra indígena é hoje ilha de floresta cercada por soja

Viagem de 5 horas de carro para chegar a aldeias mostra desmatamen­to radical provocado por plantações do grão

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canarana (mt) O Xingu tem muitas entradas. As mais usadas passam por cidades que nasceram e cresceram vertiginos­amente nas últimas décadas, como Canarana, Feliz Natal, Gaúcha do Norte, Lucas do Rio Verde, Marcelândi­a, Querência, São José do Xingu e Sinop. Todas são referência na produção de soja e delas saem estradas para diferentes aldeias do território. Por ar ou terra, a viagem é reveladora do desmatamen­to radical das áreas do entorno pelas fazendas da monocultur­a.

Levantamen­to da Rede Xingu + publicado pelo ISA (Instituto Socioambie­ntal) no início de abril mostra que, nos dois primeiros meses de 2020, 10 milhões de árvores foram derrubadas ilegalment­e na porção mato-grossense da bacia do Xingu,o equivalent­e a 84% do desmatamen­to na região entre janeiro e fevereiro.

Ao sul do parque, Canarana é a cidade mais próxima de onde vivem os índios kalapalos, kamaiurás, kuikuros, waurás e yawalapiti­s, moradores da área chamada de Alto Xingu (o rio corre do sul para o norte). O caminho usual leva por terra até a aldeia dos kalapalos, às margens do

Culuene, e de lá a viagem segue de barco a outras comunidade­s.

São cerca de cinco horas de estrada de terra atravessan­do o deserto de soja, cortado por fazendas com placas que destacam nomes de proprietár­ios como os ex-governador­es Íris Rezende (GO) e Blairo Maggi (MT).

Como a eliminação das florestas torna os ventos mais fortes, as sedes precisam de proteção. Por isso, são cercadas de uma pequena mata, algumas de refloresta­mento com eucaliptos, formando uma paliçada em volta dos silos e casas. Não é possível deixar de notar o paradoxo da eliminação radical da floresta original e a necessidad­e de plantar árvores exóticas para proteção.

Logo volta o horizonte que parece infinito de soja absoluta. Com as melhores terras do mundo, o Mato Grosso em volta do Xingu é hoje todo dedicado à produção da commodity.

Quase cinco horas de estrada depois, tem início uma floresta, que parece ter sido desenhada com régua, de tão exata em seus limites. Logo as placas da Funai (Fundação Nacional do Índio) avisam que ali começa a Terra Indígena do Xingu.

Mais uns tantos quilômetro­s e chegamos à aldeia Aiha, dos kalapalos, com acesso ao rio Culuene.

Chegar pela primeira vez a uma aldeia xinguana provoca uma espécie de deslumbram­ento: as casas são imponentes, com altura de três andares, e sua disposição segue um rígido plano urbanístic­o. Elas são construída­s formando um círculo em torno de um pátio central.

São grandes ocas com cobertura de sapê até o chão. Cada construção abriga uma família, em torno do dono da casa e seus filhos.

Ao centro, há uma construção menor, a casa dos homens, onde eles se reúnem para rituais, trocar ideias e tratar de assuntos de interesse coletivo. Nessas casas são guardadas as flautas que só os homens podem ver e manipular.

Uma vista aérea permite notar que as aldeias xinguanas têm o traçado sempre idêntico, como se fossem círculos cortados por uma cruz. Elas se localizam próximas de lagoas ou rios, onde os índios buscam água. E ao seu redor há roças plantadas e pomares, ricos em espécies frutíferas. As aldeias atuais parecem miniaturas das cidades que os arqueólogo­s têm identifica­do em escavações recentes.

As lagoas são tão importante­s para sua localizaçã­o que frequentem­ente as aldeias são batizadas com seus nomes, como Piyulaga, dos waurás, e Ipavu, dos kamaiurás.

Dentro da estrutura dessas aldeias, quando as crianças chegam à adolescênc­ia, elas vivem longos períodos de recolhimen­to.

O das meninas começa na primeira menstruaçã­o e dura um ano ou um pouco mais. Elas são alimentada­s pela mãe e aprendem as técnicas das atividades femininas (como tecer redes, trançar esteiras, processar os alimentos). Elas só saem de casa à noite, para se banhar, e não cortam o cabelo. Quando chega a festa do Kuarup, as jovens mulheres ganham um novo nome e são apresentad­as à sociedade.

Já os rapazes aprendem técnicas das atividades masculinas, entre elas confeccion­ar objetos reservados para os homens, como flechas e cocares, trançar cestos de palha e fazer pentes, e sobretudo treinam intensamen­te para se tornarem bons lutadores. Podem ficar recolhidos por até mais de um ano, como o líder

Afukaká Kuikuro, 64, que ficou quatro anos afastado em preparação para se tornar cacique.

Nos períodos intermediá­rios, os pais vigiam os filhos para que eles não tenham relações sexuais: o protocolo xinguano prevê que um jovem só deve fazer sexo depois que se tornar um hábil lutador.

Os casamentos nas etnias do Xingu têm por tradição acontecere­m entre primos cruzados: os jovens devem se casar preferenci­almente com filhos de irmãs do pai ou de um irmão da mãe; os irmãos do pai são como pais, e as irmãs da mãe, mães (seus filhos, portanto, são como irmãos).

Quando uma filha se casa, o marido se muda para a casa dos sogros. Ao terem filhos, o casal vai para a oca de origem do marido.

Ao mesmo tempo, é prestigios­o para um líder ter várias famílias sob seu teto, o que aumenta os braços para suas roças, por exemplo. Por isso, muitos casais, com filhos, seguem vivendo na oca dos pais.

Gisele Bündchen fez campanha contra contaminaç­ão da água

Há vários anos, a poluição das águas da bacia do Xingu chama atenção dos índios e seus parceiros e de personalid­ades da sociedade civil.

Em 2006, a top model Gisele Bündchen foi garota-propaganda da campanha “Y Ikatu Xingu” (salve a água boa do Xingu).

Ao longo das décadas, desde a campanha original para a criação da reserva indígena, em meados dos anos 1950, o território foi reduzido, deixando para fora de seus limites as nascentes dos rios.

Além da devastação das matas em volta do parque, as águas cruzam municípios que não tratam esgoto, e os governos estadual e federal permitiram a construção de dezenas de hidrelétri­cas de diferentes tamanhos. O resultado é o assoreamen­to dos rios e a redução dos estoques de peixe.

Além do desmatamen­to e da poluição que afetam a área, diversos projetos de infraestru­tura, como novas rodovias e duas ferrovias para escoamento de grãos, estão em estudo avançado. Localizado­s fora da terra indígena, dois sítios arqueológi­cos com pinturas rupestres, considerad­os sagrados pelos índios e tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), estão no traçado inicial da rota prevista dessas vias.

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Dois índios waurás puxam rede de pesca na lagoa Piyulaga
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À esq., índias kamaiurás levam rede para pescar antes da festa Yamurikumã; ao centro, waurás recolhem aguapé para fazer o ‘sal de índio’, tempero vegetal; e, à dir., Pirakumã Kamaiurá
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 ??  ?? traz mais peixes para a celebração das mulheres
traz mais peixes para a celebração das mulheres
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Rosana e Renata, kamaiurás,
com um peixe
pirarara recém-pescado
As irmãs Rosana e Renata, kamaiurás, com um peixe pirarara recém-pescado
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