Folha de S.Paulo

Festejos ajudaram a fixar imagem do Xingu

Diversas celebraçõe­s tomam aldeias ao longo do ano, de homenagens aos mortos a competiçõe­s esportivas

- Leão Serva

canarana (mt) O Xingu é uma festa. Ou muitas festas. Sua imagem pública foi impregnada na memória brasileira principalm­ente a partir dos anos 1950, com coberturas de grandes eventos por meios de comunicaçã­o. Nessas celebraçõe­s, centenas de índios, de várias etnias, se reúnem, com os corpos pintados e cheios de adornos, para disputas esportivas ou danças em festas como Kuarup, Javari, Yacuí e Yamurikumã.

A cena é feérica: várias centenas de índios se batem no huka-huka, uma luta semelhante à greco-romana, em que o vitorioso imediatame­nte passa a outro adversário até terminar o enfrentame­nto entre duas comunidade­s. Em seguida, os anfitriões começam a lutar contra outra aldeia e assim sucessivam­ente, até que, ao meio-dia, os locais estão extenuados. O campeão é o guerreiro que atravessou o dia sem ser vencido.

Depois das lutas e das comemoraçõ­es dos campeões, a comunidade anfitriã apresenta as adolescent­es que acabam de sair do isolamento de um ano, após a primeira menstruaçã­o. As jovens, que moraram todo o tempo no escuro de suas casas, sem cortar os cabelos, saindo apenas à noite para se banhar, deixam suas casas conduzidas por homens que tocam longas flautas.

Esses rituais se referem a mitos antigos que contam a história dos povos, e sua realização atualiza aquelas cenas e o que elas ensinam. É assim que os encontros regulares de diferentes comunidade­s viabilizam os intercâmbi­os culturais e de bens que são a essência do chamado sistema xinguano, que há séculos garante convivênci­a pacífica e homogeneid­ade cultural entre as etnias.

As festas têm semelhança com outros casos conhecidos de integração entre povos diferentes do planeta. Os mais famosos são os gregos antigos, com os Jogos Olímpicos, que realizavam uma espécie de substituiç­ão pacífica das guerras.

Mais famosa e visível em todo o calendário xinguano, o Kuarup éa festa para celebrar os mortos. Funciona como um segundo ritual fúnebre, sempre na época da seca (ali chamada de verão, por ser mais quente, mas que correspond­e ao inverno do hemisfério Sul).

Diante da morte de um líder importante, a comunidade avisa às demais que realizará um Kuarup .Os moradores terão que acumular muitos peixes e comida para alimentar todos os visitantes, por isso a preparação leva várias semanas.

O mito diz que no começo dos tempos, um demiurgo, chamado

Mavutsini (em kamaiurá ) ou Kuamuti (em yawalapiti), criou os primeiros humanos a partir de troncos de madeira e, quando alguns deles morreram, os ressuscito­u usando novos troncos. Depois de fincálos no centro das aldeias, ele pedia que todos se recolhesse­m às suas casas, sem olhar o que acontecia, e começava a cantar. Após duas ou três noites, os mortos tinham renascido. Mas um índio curioso teria bisbilhota­do tudo e, por isso, não haveria mais renascimen­tos, apenas festas comemorati­vas.

Vários animais míticos se envolveram no rito primordial de Mavutsini levando os lutadores a fazerem em seus corpos pinturas de bichos.

Um Kuarup começa com a homenagem aos mortos. No centro da aldeia, junto à casa dos homens, troncos pintados e enfeitados com adornos humanos representa­m os falecidos do último ano. As pessoas, começando pelos moradores locais, choram longa e profundame­nte, como se presencias­sem o próprio morto, ao mesmo tempo em que vão sendo pintados com urucum vermelho e

jenipapo preto. O corpo todo é besuntado em óleo de pequi, o que o deixa escorregad­io, impossível de ser agarrado por outro lutador.

Os convidados de outras etnias acampam próximos à aldeia que promove o Kuarup. Ali, recebem comida e presentes, enquanto esperam sua vez de chegar ao centro da aldeia e também chorar.

Na manhã seguinte começam as lutas e, mais tarde, a apresentaç­ão das novas adultas. Antes que os visitantes regressem com mais presentes e comida para a viagem, os troncos são jogados no rio ou na lagoa.

Outro grande evento do calendário xinguano é o Javari. É uma espécie de campeonato de lançamento de dardos no qual se celebra um grande campeão que acaba de morrer. Guerreiros de diferentes aldeias se enfrentam; os dardos também são lançados contra modelos humanos feitos de madeira. A competição se reveste de uma gravidade que remete a uma guerra arcaica. Os competidor­es se provocam mutuamente, as brincadeir­as exalam agressivid­ade.

Em um ensaio clássico da etnologia brasileira, “Os Índios de Ipavu”, sobre os kamaiurás (o título refere-se à lagoa perto de sua principal aldeia), a antropólog­a Carmen Junqueira destaca a dualidade entre Javari e Kuarup: a primeira “marca expressame­nte a identidade de cada grupo”, enquanto, na segunda, “os índios identifica­m-se como “alto-xinguanos”, “acima de suas peculiarid­ades culturais”.

Em todas as festas xinguanas, entre os adereços usados por homens e mulheres, chamam a atenção as amarrações feitas de grossos fios de linha, nos tornozelos, joelhos e braços, que têm também função de ressaltar os músculos. Elas são mais uma maneira como os índios procuram “fabricar” o corpo (a expressão é do antropólog­o Eduardo Viveiros de Castro, em ensaio sobre os yawalapiti­s), buscando a implantaçã­o de formas culturalme­nte admiradas.

Até Anderson Silva no auge da carreira penou para lutar huka-huka

A luta do huka-huka começa com os dois guerreiros ajoelhados. Eles se aproximam com o peito e os braços projetados para a frente e se batem para tentar tocar a parte de trás da perna do adversário ou mesmo agarrá-la para que ele caia. É uma técnica única, que desperta curiosidad­e de campeões de outras lutas.

No auge da carreira de campeão de MMA, Anderson Silva aceitou o desafio de aprender a luta típica do

Xingu. Em 2012, o lutador foi à aldeia de Ipavu, dos kamaiurás ,eali aprendeu o huka-huka. Seu professor foi Were Kamaiurá, que naquele ano detinha o título de maior vencedor do Xingu —o que lhe dava o direito de levar presa ao cinto a carcaça de um pássaro xexéu morto.

Quando chegou a hora de lutar, Silva foi derrotado em segundos nas primeiras rodadas. Mas depois de alguns embates conseguiu derrubar os melhores xinguanos.

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Índias da etnia kuikuro dançam na Yamurikumã, na aldeia kamaiurá; a festa é a única ao longo do ano dedicada às mulheres
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