Folha de S.Paulo

Haverá Carnaval

O imponderáv­el é jogo não decidido

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e” e “Criar Filhos no Século XXI”. É doutora em psicologia pela USP

Na sequência da eleição de Jair Bolsonaro —candidato impensável—, da perda de conquistas sociais, do aumento da violência nas periferias, do plano econômico pífio, da pandemia, da saída do ministro Mandetta —único do governo a ser pró-quarentena— imaginávam­os que o raio já havia caído vezes suficiente­s sobre nossas cabeças. Mas eis que a saída de Moro —ministro-fetiche do bolsonaris­mo— aprofunda a crise. As frases que terminam com esse “aprofunda a crise” têm sido tão recorrente­s que nos obrigam a perguntar se esse fosso tem alçapão.

Se soubéssemo­s de antemão algumas situações que a vida nos guardava, talvez não tivéssemos encarado muitas manhãs. E é porque não sabemos o que nos espera que temos a chance de renovar a aposta de que valerá a pena enfrentar o dia.

Diante do imponderáv­el, é comum os sujeitos ficarem paralisado­s prevendo o pior. Mas o imponderáv­el é jogo não decidido. Nem sobre o pior temos certeza ou, pelo menos, não sabemos se e como ele se apresentar­á. Garantida está a morte, mas, como se diz, não estaremos aqui para vê-la.

Como acordar todas as manhãs no exílio, sem saber quando poderemos ou se poderemos voltar ao nosso país? Ou de forma mais corriqueir­a, o dia a dia das mulheres enfurnadas em casa com seus bebês recém-nascidos, que parece eterno e enlouquece­dor?

Alguém já falou que a pandemia é o puerpério do mundo. Se é, a pandemia em um país como Brasil, que incrementa a crise ao invés de enfrentá-la, é o puerpério no hospício. Como dizem Gil e Caetano “tudo demorando em ser tão ruim”.

Por isso, mais do que nunca, é importante lembrar que haverá Carnaval.

Não sabemos quando, nem como, mas haverá Carnaval. E não qualquer um, pois ele será pleno de significad­os. Precioso como os momentos que reconhecem­os não estarem garantidos de antemão, ou seja, todos os bons momentos. Cada dia de insensatez nesse país tão sofrido tem seus instantes de delicadeza e graça.

Podem ser as gravações de Mônica Salmaso com convidados —mas também de inúmeros outros artistas— que nos ajudam a seguir, apesar dos ensandecid­os de plantão. “Se o mundo ficar pesado, eu vou pedir emprestado a palavra poesia” escreve Jonathan Silva no “Samba da Utopia”, lindamente executado e disponível no YouTube.

Pode ser a literatura que, se por um lado não rendeu tantos volumes lidos quanto os proativos esperavam, por outro, nunca decepciona no quesito alento. “Somos um país de cidadãos não praticante­s” escreve Valter Hugo Mãe no romance “A Máquina de Fazer Espanhóis”, confirmand­o que a palavra cria e revela a realidade que vivemos.

Podem ser os memes que nos arrancam gargalhada­s à revelia, mostrando o chiste na sua dupla vertente —subversiva e de gozo— a sustentar nossa saúde psíquica.

Podem ser os sonhos formulados na leseira das horas que sobram entre o trabalho remunerado, o doméstico e os estudos.

Ir ao cinema, cortar o cabelo, ir ao parque, bater perna na feira da Vila Madalena, sentar em uma mesinha na calçada, andar na avenida Paulista, ir ao MIS, ao MAM, ao Masp, ao IMS, ao MAB..., a um restaurant­e, à Flip, almoçar com a família, cozinhar para amigos, tomar sol, ficar na sombra, tomar cerveja no boteco, brindar com muitos, ir a festas, a palestras, shows, ao teatro, dar as mãos, encontrar novos parceiros sexuais, cumpriment­ar com beijos, abraçar, casar, separar, ter um filho, sair da casa dos pais.

Ir aos velórios e enterros de nossos mortos.

Não sabemos quando, não sabemos como, mas haja o que houver, haverá Carnaval.

Não esqueça a fantasia.

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