Folha de S.Paulo

Há 50 anos, Waly Salomão escrevia texto que mudaria a contracult­ura

Há 50 anos, preso no Carandiru, Waly Salomão escrevia o embrião do livro ‘Me Segura Qu’Eu Vou Dar um Troço’, um clássico da contracult­ura

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Preso por porte de maconha, aos 26 anos, Waly Salomão era um poeta inédito ao entrar numa cela do pavilhão dois do presídio Carandiru, em São Paulo. O confinamen­to de 18 dias, de janeiro a fevereiro de 1970, renderia anotações febris.

“Este texto —construção de um labirinto barato como o trançado das bolsas de fios plásticos feitas pelos presidiári­os. Um homem forte digere os atos de sua vida (inclusive os pecados) como digere o almoço”, ele escreveu enquanto preso no cubículo.

A linguagem experiment­al partia do mito do dilúvio e misturava diário, prosa poética, ensaio e poema. Se o início era cosmogônic­o, o fim remetia ao microcosmo da cadeia. “Vê só, vê só: um caranguejo faz xixi no urinó.”

Há cinco décadas o texto “Apontament­os do Pav Dois” nascia como o pilar do livro “Me Segura Qu’Eu Vou Dar um Troço”, lançado em 1972 pela editora José Álvaro e relançado há quatro anos pela Companhia das Letras. Escrita na adversidad­e, a obra se nutriu não só das experiênci­as no xadrez, mas também da tradição poética e filosófica lida e relida por Salomão —morto em 2003, ele foi um dos mais influentes poetas da geração que despontou na década de 1970.

Em tempos de confinamen­to mundial, a obra segue como um caso clássico de liberdade concedida pela criação literária. O humorista José Simão, colunista deste jornal, foi um dos primeiros leitores do texto depois da saída de Salomão do cárcere.

“Era tudo escrito com uma caneta, num caderno, em garrancho. Era terrível, poético, bíblico, cósmico, numa linguagem única. Fiquei fascinado. Tive essa alegria na vida, ter sido amigo íntimo de Waly Salomão com aquele bocão”, lembra Simão, falando do artista.

A prisão do escritor baiano ocorrera numa blitz policial na avenida São Luís, ao ser flagrado com um punhado de maconha. Desde a dispersão do tropicalis­mo, o artista se hospedava com Gal Costa nos Jardins e, a partir do final de 1969,nocentrode­SãoPaulo,no mesmo prédio onde residiram Dedé e Caetano Veloso.

“Naquela época todos nós éramos como uma família. Quando Caetano e [Gilberto] Gil foram exilados, eu continuei em São Paulo por um tempo longo. Eu morava com o Waly e mais uma turma grande. Tínhamos uma casa alugada na Ministro Rocha Azevedo”, lembra Gal Costa.

“Waly era muito engraçado. Eu trouxe minha mãe de Salvador para São Paulo e ela acabava cozinhando para todos, em especial um frango grande, e eles roubavam a comida antes mesmo de nós nos sentarmos à mesa.”

No documentár­io “Pan-Cinema Permanente”, de Carlos Nader, Salomão fala sobre o impacto da vivência no Carandiru. “O fato de eu ter sido encarcerad­o, ver o sol quadrado, aquilo foi uma concentraç­ão até espacial do meu desejo e eu consegui fazer meu primeiro texto, consegui jorrar daqui de dentro. Quer dizer, o que é prisão virou liberação de forças.”

“Na cadeia tudo é proibido e tudo que é proibido tem. Criação = encaixar tudo e não se decidir por coisa alguma”, definiu o poeta nos apontament­os.

A fauna da penitenciá­ria temperou a prosa apocalípti­ca de Salomão. “O cara estuprado por seis. Os bicheiros escondendo comidas, cigarros. O filho do bicheiro que se entregou para livrar o pai e estava morrendo de dor de garganta. O assaltante baleado que teve acessos violentos de dor. A descida ao inferno do poeta. Estou ouvindo Roberto Carlos, Ray Charles, Gil e Caet, ‘Charles Anjo 45’”, descreveu.

Para tirar o artista do Carandiru, o ator Sérgio Mamberti mobilizou um advogado de presos políticos, Iberê Bandeira de Mello, e se ofereceu para depor. “Waly não falava sobre as circunstân­cias que viveu na prisão. Em certas coisas ele era uma pessoa muito falante ou muito reservado quando queria”, afirma o artista plástico Luciano Figueiredo, seu amigo.

No final de 1971, o poeta brilharia como diretor do show “Fa-Tal: Gal a Todo Vapor” e se tornou um dos agitadores do desbunde em Ipanema, numa trupe formada, entre outros, por seu irmão, Jorge Salomão, Torquato Neto e José Simão.

“Era uma afinidade grande que eu tinha com ele, então acabava que eu nem sabia quem tinha convidado quem [para o ‘Fa-Tal’]”, diz Gal. “Eles eram minha turma. As dunas da Gal realmente trouxeram essas pessoas com aquela aura especial. Eu, naquele momento, andando com aquelas roupas e com a minha postura, também era uma pessoa fora dos padrões.”

Figueiredo testemunha a discrição de Salomão com os primeiros manuscrito­s. “Ele era muito atento a tudo, a todas as artes. E, como era de personalid­ade cativante e extravagan­te, falava que buscava oportunida­des para dar seguimento ao texto que começara em 1970, os ‘Apontament­os do Pav Dois’. Entretanto, não mostrava o texto para ninguém.”

No Rio de Janeiro, ele acrescenta, o artista Hélio Oiticica estimulou a publicação “e até chegou a fazer um projeto gráfico que não se sabe por que não foi realizado”.

Óscar Ramos e Luciano Figueiredo assinam a criação da capa de “Me Segura”, um marco no design editorial brasileiro por estampar o próprio autor numa pose relaxada, ao lado de José Simão e Rúbia Mattos, moradora do morro de São Carlos.

“A foto foi tirada por Ivan Cardoso, o local é a praça do Lido [em Copacabana] e a camiseta que eu estou usando era sobra do cenário do show da Gal, um resto enorme de cetim dourado. Fiz uma polo ‘fa-tal’”, gargalha Simão.

O verso “eu não preciso de muito dinheiro”, da canção “Vapor Barato”, musicada por Jards Macalé, espelha a vida nômade e franciscan­a de Salomão. Em São Paulo, os portos de seu vapor eram as casas de amigos como Maurício e Lucila Pato, Erandy Albernaz e Regina Boni, além de Gal. Nem o Carandiru o enquadrou.

Em novembro de 1972, voltou a ser preso na capital paulista. O poeta levava outra vez uma erva no bolso quase vazio.

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Jairo Malta Ilustração a partir de retrato de Waly Salomão
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