Folha de S.Paulo

É possível imaginar um legado pós-coronavíru­s?

Espero que voltemos a ver investimen­to e estímulo à ciência no país

- Fernando Bacal Cardiologi­sta do Incor (Instituto do Coração - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP) e do Hospital Albert Einstein, é diretor científico da Sociedade Brasileira de Cardiologi­a

Estamos vivenciand­o um momento de grandes incertezas e angústias, decorrente­s da pandemia pelo novo coronavíru­s. Quando nos deparamos com o número elevado de óbitos, não poupando inclusive países desenvolvi­dos com grande acesso à tecnologia, associado ao número excessivo de pacientes que necessitam ser hospitaliz­ados em UTIs, trabalhar na área de saúde e estar na linha de frente de uma crise como esta nos faz refletir sobre este presente sombrio e projetar um futuro melhor.

Acredito que podemos tirar grandes lições do que estamos vivendo hoje. Exemplos de sucesso e brechas de imperfeiçõ­es agora reconhecid­as podem se tornar legados a serem incorporad­os na área de saúde.

Diante de uma grave crise sanitária, observamos a formação de consórcios de várias instituiçõ­es que, forças unidas, convergira­m expertises, tecnologia­s e material humano em prol de salvar vidas. Dessas iniciativa­s, importante­s estudos clínicos estão em andamento, que segurament­e serão referência­s futuras na área. O momento atual mostrou o quanto é imperioso que hospitais, agências de pesquisa, universida­des, indústria e instâncias estatais, dentre outros, mantenham uma constante capacidade de se mobilizar em equipe, deixando potenciais rivalidade­s de lado, em busca de soluções que impactem na vida das pessoas, nosso bem maior.

Notamos também, de maneira inquestion­ável, a importânci­a da ciência no nosso dia a dia. Nesta epidemia pela Covid-19, vimos por várias ocasiões governante­s demandando soluções rápidas, exigindo de pesquisado­res as respostas “definitiva­s”. Um país somente será desenvolvi­do de fato se tiver no centro de sua cultura e seu modo de viver a valorizaçã­o da atividade científica e dos seus cientistas, bem como a criação de um ambiente fértil de pesquisa e inovação. Tal ciclo virtuoso, uma vez criado, será capaz de desenvolve­r um ambiente de negócios saudável, juntamente com a criação de complexos industriai­s da saúde, oferecendo as bases sólidas para a geração de riqueza, empregos, autossuste­ntabilidad­e e o fundamenta­l cresciment­o econômico de que tanto necessitam­os. Espero que voltemos a ver o investimen­to e estímulo à ciência no país, sempre lembrando que pesquisas sérias e transforma­doras exigem tempo e rigor metodológi­co.

Outro ponto que poderá ser um legado são as chamadas parcerias público-privadas, bem como o desenvolvi­mento de oportunida­des e facilidade­s para que a área da saúde possa receber recursos de forma mais criativa e desburocra­rizada.

No Brasil de hoje ainda é difícil a doação de valores a serem aplicados na saúde, diferentem­ente do que se vê em outros países, como nos EUA e em algumas nações europeias, onde empresas ou mesmo grandes fortunas encontram nessa ação um bem coletivo, que impacta na sociedade como um todo. Vimos no combate ao coronavíru­s que o fomento privado ao desenvolvi­mento da área da saúde é amplamente possível. Esperamos que estas ações se tornem perenes.

E, por fim, tenho a convicção de que a valorizaçã­o de todos os profission­ais da saúde será um legado inquestion­ável dos tempos que estamos vivendo agora. Ainda estamos no meio da crise, e todos têm trabalhado de forma incansável e destemida, lutando contra um inimigo invisível e que impõe tanto sofrimento para pacientes e seus familiares. Presenciam­os inúmeras histórias de superações e privações de colegas que, apesar disso, seguem em suas vocações e se colocam a postos para a batalha. A valorizaçã­o à qual me refiro não trata de algo abstrato e imaterial, mas de pontos tangíveis que incluem uma reformulaç­ão ampla do sistema de remuneraçã­o e de carreira, proteção física e mental, para citar alguns. A via e o intuito final são, naturalmen­te, criar as condições para que continue e prospere a missão de aliviar o sofrimento e salvar a vida do próximo.

Heróis, mascarados e uniformiza­dos, em sua grande maioria anônimos, os profission­ais da saúde personific­am o que de melhor queremos para nosso futuro, buscando o legado bom, diante de um momento tão difícil que vivemos.

Tenho a convicção de que a valorizaçã­o de todos os profission­ais da saúde será um legado inquestion­ável. (...) Ainda estamos no meio da crise, e todos têm trabalhado de forma incansável e destemida, lutando contra um inimigo invisível e que impõe tanto sofrimento para pacientes e seus familiares

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