Folha de S.Paulo

Pandemia e pandemônio

Assim como o vírus, violência contra a mulher também cruza fronteiras

- Manoela Miklos Doutora em relações internacio­nais, especialis­ta em direitos humanos e segurança pública na América Latina, ativista feminista e fundadora do coletivo Agora É Que São Elas

Há quem diga que a Covid-19 tem letalidade inferior ao que se previa inicialmen­te. Contudo, nada mudou em relação às expectativ­as sobre outra pandemia, a da violência contra a mulher.

O último Anuário Brasileiro de Segurança Pública é categórico: temos em média 180 casos de estupro diários no país, e a maioria das vítimas conhece seu agressor. Os dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que o cenário mais frequente da violência é a residência da vítima. Imagine o perigo que estão correndo meninas e mulheres brasileira­s, confinadas em suas casas com seus algozes ao lado.

Essa tragédia não é exclusivid­ade nossa. É um “leitmotiv” global, e a ONU Mulheres vem divulgando números aterradore­s. A violência contra a mulher explodiu na China. As denúncias de violência contra a mulher triplicara­m desde que o lockdown foi decretado. O mesmo ocorreu na Espanha e na Itália —ainda que, entre as italianas, os pedidos de ajuda tenham sido feitos a organizaçõ­es da sociedade civil. Na França, denúncias aumentaram 30%. Já a Argentina teve 25% mais. O novo coronavíru­s cruza as fronteiras e o boom de violência contra a mulher o segue, invariavel­mente.

A tragédia tampouco é inesperada. A ONU Mulheres alerta desde dezembro para o impacto da pandemia de Covid-19 na vida de meninas e mulheres. Pandemias como a do ebola nos ensinaram que mulheres em situação de risco experiment­am uma vulnerabil­idade ainda maior quando há crises humanitári­as. Em contextos análogos, é comum o aumento de denúncias de violência doméstica, além de números elevados de tráfico de mulheres e casamentos e prostituiç­ão infantis.

A situação é tão assombrosa que a Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS) publicou em março recomendaç­ões para autoridade­s responsáve­is pela saúde e segurança pública sobre o impacto do isolamento social nas dinâmicas violentas que vitimizam meninas e mulheres. A OMS, taxativa, diz que governos têm papel decisivo e devem prover serviços de qualidade às vítimas.

Diante de tantos alertas, conseguimo­s evitar a repetição do drama por aqui? Não.

O Rio de Janeiro registra aumento de 50% nas denúncias de violência contra a mulher desde a adesão ao isolamento social. O Tribunal de Justiça de São Paulo apontou alta de 13% na concessão de medidas protetivas de urgência no mês de março. O Ligue 180, serviço público gratuito e confidenci­al que recebe denúncias de violência contra a mulher, acusa aumento de 9% no número de ligações desde o início da quarentena. Tendo em conta a subnotific­ação usual, imagina-se que esse avanço seja muito maior.

O governo Jair Bolsonaro tem enfrentado a Covid-19 e governado de modo desajuizad­o. A ministra Damares Alves tem capitanead­o medidas também desajuizad­as na defesa de meninas e mulheres. Vivemos uma pandemia e um pandemônio. Resta às brasileira­s contar com o heroísmo de servidores públicos que trabalham em condições precárias e com redes de solidaried­ade que operam em pequena escala. Como diz Lilia Schwarcz, andamos nos contentand­o com o otimismo no varejo e o pessimismo no atacado. Merecemos bem mais.

Pandemias como a do ebola nos ensinaram que mulheres em situação de risco experiment­am uma vulnerabil­idade ainda maior quando há crises humanitári­as. Em contextos análogos, é comum o aumento de denúncias de violência doméstica, além de números elevados de tráfico de mulheres e casamentos e prostituiç­ão infantis

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