Entenda os motivos da obsessão do presidente pela PF no RJ e em PE
Família e adversários estão envolvidos em investigações; Moro citou os 2 estados em acusação
BRASÍLIA Em sua despedida do Ministério da Justiça, Sergio Moro mencionou que, além do diretor-geral, o presidente Jair Bolsonaro também queria trocar os superintendentes da Polícia Federal no Rio de Janeiro —este pela segunda vez— e em Pernambuco.
O ex-juiz não expôs quais seriam os motivos do interesse do presidente, mas afirmou que não lhe foram apresentadas razões ou causas aceitáveis para as substituições.
A preocupação com investigações sobre sua família, desconhecimento sobre processos, síndrome de perseguição, inimigos políticos e fake news são alguns dos principais pontos elencados por pessoas ouvidas pela Folha para tentar desvendar o que há no Rio e em Pernambuco.
Reduto político
Capitão reformado do Exército e defensor de pautas das forças de segurança, Bolsonaro sempre manteve contato com agentes e delegados das polícias. O filho Eduardo virou escrivão da PF, o que também estreitou laços. No Rio, onde a família mora, a aproximação foi ainda maior.
A candidatura presidencial levou ao auge das relações principalmente com integrantes da Polícia Federal, que faziam sua segurança —a equipe chegou a ser coordenada por Alexandre Ramagem, nomeado novo diretor-geral da PF.
Segundo relatos, bastidores da Superintendência no Rio e intrigas entre grupos passaram a chegar rapidamente a Bolsonaro desde a campanha. Depois, as relações foram mantidas, e os assuntos viraram mais importantes, principalmente após vir à tona a investigação de seu filho Flávio, senador pelo estado.
A presença ou ausência do chefe da PF no edifício do órgão era motivo de perguntas por parte do presidente, por exemplo. Funções de delagados específicos também viravam alvo de reclamações.
‘Rachadinha’ e Queiroz
A apuração no gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio começou após um relatório apontar movimentação de R$ 1,2 milhão na conta do ex-assessor Fabrício Queiroz, entre 2016 e 2017. Queiroz é PM aposentado e antigo amigo de Bolsonaro.
A suspeita do MP do Rio é a de que o dinheiro seja de um esquema de “rachadinha”. O caso não está com a PF, mas o órgão tocava à época investigações envolvendo personagens em comum. Aliados do presidente divulgaram, várias vezes, que a polícia possui informações sobre o assunto.
Flávio é investigado desde janeiro de 2018 sob a suspeita de recolher parte do salário de seus empregados na Assembleia de 2007 a 2018.
Fabrício Queiroz afirmou que recebia valores dos colegas de gabinete e que usava o dinheiro para remunerar assessores informais de Flávio, sem conhecimento do então deputado. Sua defesa, contudo, nunca apontou os beneficiários finais dos valores.
Queiroz era amigo do ex-policial militar e miliciano Adriano da Nóbrega, chamado de herói por Jair Bolsonaro. Adriano estava foragido e foi morto em fevereiro em uma operação policial na Bahia.
De 2007 até Flávio se mudar para o Senado, Adriano teve parentes nomeados no antigo gabinete na Assembleia.
Declaração de bens de Flávio
O senador era alvo de procedimento sobre falsidade ideológica eleitoral por suposta ocultação de patrimônio na declaração de bens à Justiça eleitoral em 2014. A PF investigava se ele teria declarado um imóvel pelo valor abaixo do real.
Ao concluir o inquérito, no início deste ano, o delegado Erick Blatt apontou que não havia indícios do crime eleitoral e de lavagem de dinheiro.
Como a investigação havia se ampliado desde seu início, a avaliação interna na polícia é a de que havia possibilidade legal de que o delegado avançasse em outros pontos, o que ele não fez. A conclusão de Blatt não afetou a apuração sobre a “rachadinha”, que está no Ministério Público do Rio.
Citação a Queiroz
A Superintendência da PF no Rio tem aberto inquérito com base em relatório federal de inteligência financeira em que o nome Queiroz é mencionado. Ele não é alvo da apuração, mas seu antigo advogado, Paulo Klein, protocolou pedido para ter acesso aos autos em setembro de 2019.
Funcionário fantasma de Carlos
O MP do Rio abriu em setembro dois procedimentos para investigar o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos) pela suspeita do uso de funcionários fantasmas em seu gabinete e da prática de “rachadinha”. Da mesma maneira que ocorre com outros casos, aliados de Bolsonaro também afirmam que a investigação está com a Polícia Federal.
Episódio Hélio Negão
A primeira crise que atingiu a PF teve como um dos panos de fundo uma investigação de crimes previdenciários que supostamente envolvia um dos grandes aliados de Bolsonaro, o deputado federal Hélio Negão (PSL-RJ).
Como mostrou a Folha , um despacho de um delegado causou confusão e virou alvo de apuração, a pedido, na época, de Sergio Moro, pressionado pelo presidente.
O documento recuperava casos de anos anteriores para levantar a possibilidade de um homem citado ser o parlamentar. Em seguida, porém, dizia que não era, mas o caso foi mandado para os órgãos de inteligência e teve sigilo decretado —procedimentos considerados fora do padrão para o tipo de investigação.
A cúpula da polícia desconfiava de uma fraude, criada com o objetivo de gerar desconfiança na PF do Rio.
Segundo integrantes da polícia, o episódio não foi isolado, mas ajudou a derrubar Ricardo Saadi da Superintendência —demissão anunciada por Bolsonaro em agosto.
O presidente chegou a dizer à imprensa que estavam tentando prejudicá-lo, mostrando ter informações de bastidores do que ocorria no órgão.
Depoimento do porteiro
Também está com a PF do Rio investigação sobre denunciação caluniosa contra Bolsonaro envolvendo o porteiro do condomínio em que o presidente morava.
O funcionário afirmou, em depoimento no inquérito que apura as mortes da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, que foi o presidente (à época deputado) quem autorizou a entrada no condomínio de um dos acusados pelo assassinato para encontrar o PM aposentado Ronnie Lessa, também réu na ação, no dia do crime.
Gravação do sistema de interfone do condomínio e a presença registrada de Bolsonaro na Câmara naquele dia contradisseram o porteiro — que, depois, afirmou à PF ter se equivocado. O inquérito ainda não foi concluído.
Laudo da Polícia Civil do Rio apontou que o porteiro que interfonou para Lessa não é o mesmo que prestou depoimento citando Bolsonaro.
Governo Witzel
No episódio envolvendo o porteiro, o presidente chegou a insinuar que o ocorrido era parte de um plano do governador Wilson Witzel (PSC-RJ). Antes aliados, os dois viraram inimigos políticos.
Nos bastidores, Bolsonaro reclamava que o adversário não virava alvo de investigações. Seus contatos na PF inflamavam a irritação, informando que tipo de apuração poderia vir a ser feita para atender aos anseios do presidente.
Política em Pernambuco
A delegada Carla Patrícia Cintra Barros da Cunha assumiu a PF-PE em 13 de dezembro de 2019. Sua indicação é um dos raros casos de ruptura de forte tradição da polícia: comandar uma superintendência no estado natal como primeira experiência de chefia regional.
Funcionária de carreira, antes de tomar posse, ela estava fora do órgão, em cargo de confiança do governo Paulo Câmara (PSB) —o governador participou da cerimônia. O fato é usado por bolsonaristas para acusar a PF de não investigar a gestão estadual; Câmara se opõe a Bolsonaro.
Para policiais federais, o interesse pela cadeira da chefia regional faz com que adversários usem a questão política para convencer o presidente de que uma troca é necessária.
Família Bezerra
Dias antes de Carla assumir, a PF realizou uma operação contra desvios de recursos públicos de obras do Nordeste. O senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) e seu filho, o deputado Fernando Coelho Filho (DEM-PE) foram alvos de busca e apreensão.
Bezerra já era à época líder do governo no Senado. A PF teve autorização do STF para entrar no Congresso e vasculhar os gabinetes dos dois parlamentares. Os celulares de ambos foram recolhidos.
Falava-se no Congresso que Bezerra trocava mensagens frequentes com os filhos do presidente. Tempos depois, reportagem da Veja revelou que materiais colhidos fizeram a PF suspeitar de vazamento da ação. A perícia encontrou uma nota oficial do advogado do senador, da noite anterior ao mandado ser cumprido —a defesa nega irregularidade.
A investigação está nas mãos do grupo de delegados que cuida de inquéritos que estão no STF. O início do caso, porém, foi em Pernambuco.
Laranjas do PSL
Pernambuco é um dos focos das candidaturas de laranjas do PSL, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito presidente.
Em novembro, a PF indiciou o deputado Luciano Bivar (PSL-PE) e três mulheres por suposta participação em esquema de candidaturas de laranjas para desviar verba pública do partido. A investigação teve início após a Folha revelar a existência do esquema no estado; o jornal mostrou que a mesma articulação ocorreu em Minas Gerais.
A PF apurou se o partido cometeu irregularidades na campanha de 2018 ao apresentar candidaturas de mulheres apenas para cumprir a cota mínima obrigatória de 30%.