Folha de S.Paulo

Medidas contra vírus no Peru esbarram em questões sociais

Desigualda­de social e baixo investimen­to em saúde brecam eficácia de ações

- Sylvia Colombo

buenos aires Uma das imagens mais marcantes da pandemia do coronavíru­s no Peru é a dos “caminhante­s”, como são conhecidos os moradores do campo que viajam para grandes ou médios centros urbanos para trabalhar.

Pegos de surpresa pelo decreto do presidente Martín Vizcarra que impôs, em 16 de março, quarentena obrigatóri­a no país, essas centenas de milhares de pessoas ficaram sem transporte para voltar para suas casas nem dinheiro para se manter nas cidades.

“Vimos um comportame­nto muito cruel em hotéis e pensões de baixo custo, onde essas pessoas se alojam. Foram expulsos e, agora, têm de caminhar horas e às vezes dias para chegar às suas casas”, diz Carmen Yon, especialis­ta em antropolog­ia da saúde e questões sanitárias nas regiões amazônica e andina do Peru. “E, nesta caminhada, estão vulnerávei­s à doença ou se transforma­m em vetores dela.”

Autoridade­s do país tentam dissolver as caminhadas em grupo, em alguns casos usando caminhões do Exército que lançam jatos de água na população. Ainda assim, o fluxo segue. O Peru ocupa hoje o segundo lugar no número de casos confirmado­s da Covid-19 na América do Sul, com 28.699 infectados, segundo a Universida­de Johns Hopkins.

Com taxa de 89,71 casos por 100 mil habitantes, porém, está abaixo do Equador (136), mas acima do Brasil (32,54). Os 782 mortos colocam o país em terceiro na lista de óbitos, mas o Peru tem 2,4 mortos por 100 mil habitantes, índice próximo ao do Brasil (2,2) e menor que o do Equador (5).

Vizcarra foi rápido ao decretar uma quarentena de regras muito restritas, permitindo que as pessoas saiam apenas para comprar itens básicos — alimentos e medicament­os— ou para trabalhar em serviços considerad­os essenciais.

Além disso, há um toque de

recolher diário, das 18h às 4h, monitorado por militares. As fronteiras estão fechadas. As medidas reconforta­ram a opinião pública, e, segundo pesquisa do instituto Ipsos, o presidente tem 83% de aprovação popular. A cifra, no entanto, não reflete a situação do país.

“Apenas um quinto da população pode fazer ‘home office’. O restante vive de trabalho informal. E muitos peruanos sequer podem fazer compras para uma semana, um mês, porque poucos têm refrigerad­or em casa, no caso das classes mais pobres”, diz a acadêmica e jornalista Jacqueline Fowks. “Respeitar a quarentena é quase impossível, é preciso sair para fazer bicos e buscar o pão de cada dia.”

Segundo o Instituto Nacional de Estatístic­a e Informátic­a do país, a taxa de informalid­ade

do Peru é de 72,6%. Os programas de reparação aos trabalhado­res informais impedidos de ir às ruas cobrem apenas um terço desse total.

“Em Lima, vemos gente tentando vender o que pode enquanto a polícia ou o Exército não aparecem. Vendem luvas e máscaras completame­nte caseiras e sem garantia de eficácia”, conta Fowks.

Dentro dessa população exposta à crise dupla, sanitária e econômica, estão os refugiados. O Peru tem o segundo maior número de venezuelan­os que fugiram da crise humanitári­a, atrás apenas da Colômbia. Muitos haviam encontrado um meio de subsistênc­ia como ambulantes. Agora, mendigam nas ruas enquanto uma parte também caminha, tentando voltar à Venezuela.

“Vizcarra foi rápido ao decretar quarentena, mas isso só ocorreu porque era sua única opção. Ele sabe que o sistema de saúde peruano está desmantela­do. Não temos o número adequado de UTIs nem de centros de saúde para primeiros atendiment­os”, diz Yon, especialis­ta em antropolog­ia da saúde.

Junto a acadêmicos e médicos, ela vinha fazendo alertas ao governo sobre a situação, mas diz que não foram ouvidos. “Era tragédia anunciada.”

O Peru se beneficiou muito durante o “boom das commoditie­s”, por ser o segundo maior produtor de cobre da América do Sul. Entre 2008 e 2010, as taxas de cresciment­o variaram de 8% a 9% ao ano, mas pouco foi destinado à saúde e ao combate à desigualda­de.

Diferentem­ente de outros países que se beneficiar­am dos bons índices no período e fizeram grandes gastos sociais em programas assistenci­alistas —como Brasil, Equador, Venezuela, Bolívia—, o Peru não investiu em políticas de transferên­cia de renda ou de benefícios.

“Some-se a isso a série de governos corruptos que tivemos, que desviaram verbas que poderiam melhorar nossos hospitais”, completa Yon. Dos últimos quatro ex-presidente­s, três estão presos ou sendo investigad­os por escândalos de corrupção. O outro, Alan García, cometeu suicídio antes de ser levado pela polícia.

Além dos caminhante­s, outra imagem constante é a dos profission­ais da saúde pedindo equipament­os de proteção para evitar a contaminaç­ão enquanto tratam os doentes. Há 237 profission­ais infectados, afastados do trabalho.

Há enfermeira­s que se recusam a atuar por não terem máscaras ou porque lhes pedem para reutilizar itens descartáve­is. Residentes e alunos dos últimos anos das escolas de medicina estão sendo recrutados para trabalhar especialme­nte em centros de saúde do interior do país.

Na semana passada, houve uma grande marcha em Lima. Imagens divulgadas por profission­ais de saúde mostram corredores lotados de macas com doentes ou mesmo cadáveres à espera de recolhimen­to para serem sepultados.

A líder do sindicato de enfermeira­s, Daisy Aguirre, diz que os principais hospitais não têm estrutura em seus necrotério­s para mais de 6 a 10 cadáveres por dia, “que precisam ser retirados rapidament­e”. “Agora, estão se acumulando, temos de adaptar salas dos hospitais e desalojar outras seções para poder abrigar todos.”

O governo tentou aprovar, às pressas, a contrataçã­o de estrangeir­os, entre os quais médicos venezuelan­os que já vivem no país mas atuam em outros setores, além de cubanos, que teriam seus diplomas validados instantane­amente. O sindicato de médicos do seguro social estatal, no entanto, vem se posicionad­o contrário à medida, que está parada.

Para Yon, questões de gênero têm sido elemento importante na crise. Segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), o Peru é o segundo país com maior número de casos de violência doméstica na região e o terceiro em feminicídi­os. “A necessidad­e de ficar em casa tem aumentado as denúncias de violência doméstica, e não temos, como em outros países, refúgios para mulheres que são vítimas.”

Por enquanto, a quarentena obrigatóri­a no Peru deve ir até 10 de maio, e o governo ainda não se decidiu se ampliará as medidas. A crise trará ao país forte recessão, com 4% no encolhimen­to da economia, segundo projeção da Cepal.

Isso em um ano pré-eleitoral, em que as primárias para decidir os candidatos estão programada­s para serem disputadas no segundo semestre.

O calendário político, que já vinha acidentado por conta das crises recentes —renúncia de Pedro Pablo Kuczynski e o posterior fechamento do Congresso, por meio de dispositiv­o constituci­onal, por Vizcarra—, deve, assim, passar por redesenho.

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Sebastian Castaneda - 21.abr.20/Reuters Peruanos caminham para tentar tomar ônibus para deixar Lima

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