Folha de S.Paulo

Após fugir da guerra e reencontra­r filho no Brasil, síria vai para UTI com Covid-19

- Flávia Mantovani

viçosa (mg) Ela sobreviveu à guerra em uma cidade sitiada e com bombardeio­s constantes na Síria. Agora, luta contra a Covid-19 em um leito de UTI de São Paulo.

Khadouj Makhzoum, 55, vivia em Aleppo, uma das regiões mais atingidas pelo conflito, e chegou ao Brasil em dezembro de 2018. Seu filho, Abdulbasse­t Jarour, 30, morava em São Paulo desde 2014 e passou quatro anos tentando trazer a mãe e a irmã mais nova, Sedra, para perto dele.

Os entraves eram muitos: documentos perdidos, falta de dinheiro para pagar a viagem e as propinas pelo caminho, estradas fechadas por meses e dificuldad­e para tirar passaporte­s e vistos.

Enquanto isso, Khadouj e a filha passaram frio, fome e dormiram na casa de parentes ou no chão de acampament­os improvisad­os na cidade disputada por rebeldes e governo. A Folha acompanhou o reencontro da família no aeroporto de Guarulhos.

A adaptação das mulheres ao Brasil, porém, não foi fácil. Sem falar o idioma, em uma cultura muito diferente e lidando com traumas do passado, entraram em depressão.

Sedra foi para o Líbano em fevereiro deste ano para morar com outra irmã. A mãe tinha planos de se unir a ela, mas seu filho Abdo tentava regulariza­r os documentos quando a pandemia suspendeu os serviços do consulado.

Agora, a Covid-19 atingiu o corpo de Khadouj, que, por ser diabética e hipertensa, faz parte do grupo de risco da doença. Ela respira por meio de ventilação mecânica na UTI do Hospital das Clínicas (HC).

Os primeiros sintomas pareciam descontrol­e de diabetes. Ela foi levada pelo filho a um posto de saúde, ao qual voltaram mais sete vezes nos dias seguintes —ela não melhorava. Foi detectada infecção.

“Eles não sabiam onde, achavam que era na garganta. Ela tomou tudo, mas só foi piorando. Disse que sentia muita dor de cabeça e dor no corpo, chorava”, diz Abdo, como é conhecido Adulbasset.

Na quarta (22), após apelos do filho, ela foi encaminhad­a a um hospital. “A médica falou uma coisa muito forte: ‘Olha, o pulmão dela está todo dominado pelo coronavíru­s’”, lembra ele, que até então não mencionava o nome do vírus ou da doença por medo de atrair má sorte.

No dia seguinte, Khadouj foi internada no HC. Como ela não fala português, em caráter excepciona­l, Abdo entrou no hospital e serviu de tradutor.

Após informar o histórico de saúde da mãe, ele escreveu em árabe e em letras grandes orientaçõe­s que os médicos queriam que ela entendesse: “vira de barriga para baixo” e “vira de costas”. Deixou os cartazes com a equipe do hospital, para que pudessem usá-los em outros momentos.

Ele se lembra, emocionado, da última vez que viu a mãe. “Quase não abria os olhos, de tão inchada. Disse: por favor, cuida do seu irmão, estou preocupada com suas irmãs. Pediu para as pessoas fazerem orações para ela. Depois disso ela não conseguiu mais falar.”

O hospital conseguiu um médico que fala árabe. Todo dia, um profission­al de saúde telefona para Abdo. Khadouj chegou a ter uma melhora consideráv­el, voltou a comer e a falar, mas no dia seguinte foi intubada novamente.

Abdo teve um colapso nervoso. Ele também já sentia alguns sintomas típicos de Covid-19, como tosse e perda de paladar e olfato. Desmaiou, foi hospitaliz­ado, mas agora diz estar bem, aguardando o resultado do exame de detecção.

“Imaginei muita coisa. Comecei a me culpar porque eu trouxe ela para o Brasil, fiquei com medo de meus irmãos me culparem. Não aguentei”, conta o refugiado, que é ativista pelos direitos dos imigrantes no Brasil.

Khadouj tem sete filhos, espalhados pelo mundo por causa da guerra. Eles acompanham a distância, aflitos. Um deles veio ao Brasil em 2019.

Ela está sedada, com ventilação mecânica e um quadro que exige cuidados, mas com bons parâmetros respiratór­ios e respondend­o bem ao tratamento.

Aliviado, Abdo aguarda. No telefone, agradeceu à médica pelas notícias. “Você está salvando o mundo, doutora, muito obrigado.”

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Bruno Santos - 20.dez.18/ Folhapress Abdulbasse­t Jarour com a mãe, Khadouj, e a irmã Sedra

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