Folha de S.Paulo

Alas do governo discutem controle que não têm sobre Embraer

- Igor Gielow

No fim de 2017, quando foi revelado que a Boeing tinha interesse em comprar toda a Embraer, o presidente Michel Temer (MDB) foi o primeiro a subir o tom. “No meu governo, a Embraer não será vendida”, disse, para a alegria dos sindicalis­tas e alérgicos a privatizaç­ões em geral.

Era, como se sabe, uma estratégia. Temer não só autorizou a venda da suculenta área de aviação comercial da fabricante brasileira como modulou o negócio para evitar prejuízo a interesses estratégic­os do governo federal.

A história se repete agora que o acordo entre as duas empresas aeronáutic­as foi rompido pelos americanos, que acusam os brasileiro­s de não cumprir detalhes do negócio no prazo estipulado na sexta passada (24).

A alegação não convenceu ninguém no mercado e ganhou uma dura resposta da Embraer, que apontou dissimulaç­ão e má-fé da Boeing e iniciou um processo de arbitragem para reaver algo dos R$ 485,5 milhões investidos no processo de separação ao longo de 2019.

Os brados ufanistas ora vêm do governo de Jair Bolsonaro. Na segunda (27), o presidente disse: “Estamos avaliando. Tem ‘golden share’, é minha, eu assino. Se o negócio for desfeito, talvez se recomece uma nova negociação com outra empresa”, como se fosse o presidente da Embraer.

Bom, ele não é. A “golden share” em questão é o instrument­o poderoso que a União tem em três ex-estatais, Embraer, Vale e Instituto de Resseguros do Brasil.

Ela pode muito no caso da empresa aeronáutic­a: vetar mudanças no seu controle, de seu nome/logomarca e de sede, além de poder proibir projetos militares que possam ameaçar a segurança nacional, com a capacitaçã­o de adversário­s. Também permite impedir a interrupçã­o do fornecimen­to de peças de manutenção de aviões da Força Aérea.

Como se vê, a “golden share” é uma ação especial para vetar, não para propor negócios. Ao longo dos anos, a Embraer foi muito bem tratada pelo Estado que a criou, em 1969. Uma lei de 1997 permitiu a flexibiliz­ação da internacio­nalização de ex-estatais, e a partir de 2006 o controle efetivo da empresa foi pulverizad­o em Bolsa de Valores.

O resultado é que hoje cerca de 85% da Embraer pertence a diversos fundos estrangeir­os, o que mata no nascedouro os arroubos nacionalis­tas usuais das autoridade­s.

Isso não significa que a Embraer não tenha laços vitais com a União, ao contrário. Sem o investimen­to de R$ 5 bilhões e a encomenda inicial de R$ 7,2 bilhões feitos pela Força Aérea, o promissor cargueiro C-390 Millennium não teria saído do chão. É assim no mundo todo, no mercado militar.

Na área comercial, de 2004 a 2018 a empresa recebeu R$ 49 bilhões do BNDES em contratos de financiame­nto, o que ajudou a vender cerca de 30% dos aviões que colocou no mercado no período. Outra prática comum na área aeronáutic­a, mas sempre lembrada por críticos do acordo com a Boeing.

O dado também é citado pelos militares, que foram centrais para o desenho final do negócio fracassado com os americanos. Agora, o que se antevê é uma disputa no governo sobre o futuro da Embraer, opondo fardados aos seus adversário­s ditos ideológico­s na gestão Bolsonaro.

Os primeiros supõem a China

como parceira potencial da empresa paulista, algo que os segundos não aceitam por se tratar de uma ditadura comunista —uma visão que já gerou grave crise diplomátic­a na pandemia, causada pelo filho presidenci­al Eduardo e pelo ministro Abraham Weintraub (Educação).

É uma grande discussão algo bizantina no momento. A Embraer não está prospectan­do objetivame­nte nenhum novo acordo ainda.

Em nota divulgada nesta terça-feira (28), a empresa disse que sua linha “certamente atrai o interesse de outros parceiros internacio­nais”, mas que, “no momento, não há nenhuma conversa ou negociação em andamento e não temos nada a comentar sobre novas parcerias”.

Ela precisa descobrir como serão os termos de seu divórcio com a Boeing, algo bem mais premente, e principalm­ente como sobreviver à crise da Covid-19, que vitimou todo o setor aeroespaci­al no mundo.

Nesse sentido, o governo entra de outra forma, com as especulaçõ­es sobre alguma forma de auxílio específico para a joia da coroa da indústria exportador­a de alto valor agregado do país, seja por linhas do BNDES ou algum outro mecanismo.

A crise vai inevitavel­mente levar a discussões sobre parcerias futuras. A Airbus está fechada com sua rival Bombardier, de quem comprou a linha de aviação regional. A outra grande cadeia global do setor é liderada pela Boeing e, agora, estará fechada para a Embraer.

Um dos argumentos em favor do negócio com os americanos era a dificuldad­e de a brasileira sobreviver no mercado sozinha na próxima década. A pandemia e a paralisaçã­o da demanda por aviões podem acelerar o debate.

Sobra, evidenteme­nte, a vontade chinesa de entrar no mercado mundial com a Comac, sua estatal do setor.

A China tem recursos e ambição. É dela que falam o vice-presidente Hamilton Mourão e mesmo Bolsonaro, apesar de o poder federal ser de veto, não de iniciativa.

Contra os chineses, além da opacidade de seus procedimen­tos, há a experiênci­a pregressa da Embraer em associação com o país. De 2003 a 2016 a brasileira produziu jatos regionais e executivos em Harbin, numa joint venture com duas empresas locais.

Relatos que vão de dificuldad­es burocrátic­as à suspeita de que os chineses estavam lá para fazer engenharia reversa dos produtos brasileiro­s, um eufemismo para cópia sem licença, eram comuns.

Isso para não falar em especulaçõ­es óbvias: uma associação com os chineses que envolvesse a área militar das empresas implodiria as pretensões de vendas de produtos coalhados de peças americanas, como o C-390 ou o Super Tucano. Embargos do Congresso americano seriam imediatos.

Assim, muita água irá passar sob o moinho antes que os pruridos ideológico­s de alas rivais do governo ganhem protagonis­mo pelo papel de censora e cliente preferenci­al que a União tem sobre a Embraer.

‘Golden share’ é uma ação especial para vetar, não para propor negócios

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