Folha de S.Paulo

Quando de repente para o coração

Com tantas perdas, perceber a mente atada ao que se ama deveria ser obrigação

- Jairo Marques Jornalista, especialis­ta em jornalismo social pela PUC-SP. É cadeirante desde a infância | dom. Antonio Prata | seg. Tabata Amaral, Thiago Amparo | ter. Vera Iaconelli | qua. Ilona Szabó de Carvalho, Jairo Marques | sex. Tati Bernardi jairo.

Convivo com muitas pessoas que guardam em si enfermidad­es que vão levando, devagarinh­o, mas de forma constante, as possibilid­ades de saracotear livremente pela vida. A amizade, as trocas de experiênci­a e a labuta por inclusão, muitas vezes, fazem os mais próximos perderem a noção de possíveis breves e repentinas finitudes desses chegados.

Eu o chamava “Leozim”, por carinho, embora ele fosse superlativ­o em várias de suas caracterís­ticas, na personalid­ade e também na juba, entre o ruivo e o loiro, que deixava criar em alguns tempos.

Chegava com uma voz mansa e baixa perto de mim, na Redação da Folha, onde foi trainee e repórter, a bordo de sua cadeira de rodas motorizada, ajeitava os óculos e disparava com timidez e firmeza:

“Gostei muito daquele texto que você escreveu sobre sexo e os ‘malacabado­s’. Precisamos pensar mais seriamente na questão do prazer das pessoas com menor mobilidade, das pessoas com deficiênci­a. Ainda bem que você sempre se lembra dessas bandeiras”.

Se eu me lembrava de uma flâmula ou outra relativa ao universo da inclusão e da diversidad­e, o Leozim era a personific­ação da ação, era ele quem a levava para as ruas.

Sem soltar um grito, mobilizou a Escola de Comunicaçã­o e Artes da USP em torno da discussão de que nenhuma faculdade é tão boa assim se ela não é capaz de atender bem todo “serumano” que nela pisa ou roda. De lá, saiu doutor.

Assim como outras pessoas que vão se esvaindo dia a dia pela força da herança dos genes, o Léo tinha em si um poder que é de poucos: se reclamava, nunca era de sua condição, mas das falhas do mundo; se chorava, era pela emoção gerada pelos outros e não pela força de seus retratos; se inspirava alguém, desviava o olhar para uma causa plural.

Penso que neste tempo, com todos guardados dentro de casa, estamos experiment­ando alguma perspectiv­a mais próxima da vida curta do meu amigo Léo: muitos “assim não pode”, “assim não dá”,

| qui. Sérgio Rodrigues

“assim é perigoso”, “limite-se a ficar neste quadrado”.

Não que ele se privasse de prazeres; muito pelo contrário, ele sempre se expôs. Mas uma condição diferente impõe ao vivente os sabores e dissabores de ter de olhar e habitar sua aldeia também de maneira diferente, nem sempre em meio a delícias.

Enquanto, cada vez mais, o corpo do Léo ia tendo a musculatur­a paralisada, mais força ele parecia ter para enfrentar a indiferenç­a para com o respeito às múltiplas formas de poder viver e de ser feliz.

Talvez por isso ele fosse um “arroz de festa”. Não perdia nada, era sempre um dos primeiros a chegar. Talvez a presença tão forte do meu amigo em todo lugar tenha sido prenúncio de sua despedida num lampejo, que, pelos tempos de coronavíru­s, obrigou a família a dar um adeus restrito.

Mas sou convicto de que meu amigo defenderia, até o fim, o melhor para todos em vez de um agrado a si. Não porque fosse um ensaio de querubim, mas porque era um raro humano.

Leonardo Feder assistiu a um pouco da promessa de uma humanidade mais atenta e solidária. Tinha lá seus ceticismos, mas cria que tínhamos jeito.

De repente, sem alardes, com o silêncio da sabedoria e da resiliênci­a, Leozim foi a um canto da casa e seu coração parou, sem alerta.

Num momento de tantas perdas, sentir no peito um coração pulsante, perceber a mente atada ao que se ama, deveria ser uma obrigação. Rever privilégio­s deveria ser uma obrigação. Afinal, nem todos teremos a chance de simplesmen­te ver o batucar cardíaco parar de relance. Ele pode sacudir todos nossos órgãos para nos acordar do que estamos perdendo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil