Folha de S.Paulo

As várias fases da burrice bolsonaris­ta

Sem coerência e sem neurônios, a extrema direita esquece o que disse e o que fez

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP

Está ainda para ser escrito um estudo sobre o papel da burrice na política brasileira. Comentaris­tas e historiado­res sempre supõem que um homem de Estado se move por estratégia e cálculo.

Os melhores instrument­os de análise podem se quebrar, entretanto, quando confrontad­os com os atos de um verdadeiro energúmeno.

O presidente Bolsonaro nem precisaria ter feito aquele discurso. Só a foto dele, com todos os ministros enfileirad­os, já vale por um atestado clínico.

Qual o sentido de chamar todo o gabinete para ouvir, com cara de pastel, aquelas explicaçõe­s sobre a demissão de Moro? Só se reconhecia, com isso, o tamanho da crise.

O presidente juntou Damares, Weintraub, Araújo, Mourão, Guedes e companhia, como se estivesse anunciando um grande plano para o Brasil. O que apresentou foi um discurso disperso, patético, mentiroso e oco, incapaz de responder à única pergunta que importava no momento.

Por que trocar o chefe da Polícia Federal?

Pela versão de Bolsonaro, tratava-se apenas de atender a um pedido do próprio demitido. E, confessada­mente, de pôr alguém na Polícia Federal com quem ele pudesse se entender, sem interferên­cias de Moro.

Reduzido ao seu ponto básico, o discurso de Bolsonaro é um escândalo.

Mas o presidente é tão falto de inteligênc­ia que nem mesmo percebe o que está dizendo.

Há burrices e burrices. Uma das que predominam, hoje em dia, talvez seja efeito do Facebook e das geringonça­s digitais.

As imagens, as piadinhas e memes se sucedem com tanta rapidez, que o sujeito perde a memória. Presidente­s como Trump ou Bolsonaro escrevem qualquer coisa no Twitter, e no dia seguinte já não se lembram mais.

Abre o comércio, fecha o STF, usa a máscara, tira a máscara, tanto faz. As falas de Bolsonaro se sucedem como disparos num estande de tiro esportivo.

Pá, pá, pá. Aí o instrutor pega aquele cartaz com uma silhueta humana para ver quantas balas chegaram ao alvo. Nosso herói nem mesmo se interessa pela pontuação que obteve. “Acertei tudo, claro, está OK?”

No “está OK?” se esconde uma inseguranç­a. Mas a inseguranç­a não se confunde com autocrític­a. Estimula, apenas, uma nova rodada de disparos.

Junto com a falta de memória, surge a incapacida­de de distinguir entre o anedótico e o essencial. O discurso do presidente sobre a demissão de Moro se perdeu, como é notório, em consideraç­ões sobre o aqueciment­o da piscina, os feitos do “número quatro”, a certidão de nascimento da sogra.

É claro, aquilo fazia sentido em sua argumentaç­ão — ele queria dizer que foi investigad­o com base em suposições infundadas. Um advogado talentoso organizari­a o discurso nesse rumo, como quem demonstra um teorema.

Bolsonaro é incapaz disso; vai pulando de fato em fato, de caso em caso, de anedota em anedota, como quem clica nas histórias do Instagram ou vagueia num game tipo “GTA”.

É esse o comportame­nto mental do bolsominio­n típico.

Primeiro, ignora o sentido mais amplo de um fenômeno para se aferrar a um detalhe de fácil compreensã­o.

Aparece um livro sobre educação sexual, por exemplo. O bolsominio­n não leu, mas fica sabendo que ali tem uma ilustração meio estranha. Será o pretexto para gritar, espernear, denunciar o diabo a quatro.

Mas ninguém vive sem entender as coisas num contexto. Depois de tirar um fato de seu contexto, o bolsominio­n terá de achar outro.

Aí entra o papel de alguma grande conspiraçã­o internacio­nal, que de tão “evidente” não tem como ser contestada.

Se alguém contestar, entra a terceira fase do processo. Trata-se de rotular o inimigo: comunista, petralha etc. Os nazistas preferiam falar em judeus. O tiro sempre “acerta”, porque o atirador é completame­nte míope e confunde tudo.

Segue-se a fase autocongra­tulatória. Moro abandona o barco? Não faz mal. Ele era falso; e nós estamos lutando “o bom combate”, como diz Bolsonaro.

Se, apesar de tudo, vier o desmentido, o desastre, o vexame, nenhum problema. Basta se esquecer do que foi dito e do que foi feito. “Torturador? Eu?” Como assim?

Os próprios eleitores de Bolsonaro já se esquecem que votaram nele. “Bolsonaris­ta? Eu? Votei no Amoêdo.”

O bolsominio­n mente. Mas não tem a inteligênc­ia do mentiroso comum. É tão burro que acredita na própria mentira; é otário até quando se arrepende.

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André Stefanini

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