Folha de S.Paulo

Três histórias sobre sombras

Abu Albiruni lutava contra as trevas científica­s, e, às vezes, precisava usar sombras para tal

- Marcelo Viana Matemático e diretor-geral do Impa. Ganhador do prêmio francês Louis D.

Estamos no ano de 1024, na cidade de Gázni, a bela capital da dinastia que governa o Afeganistã­o. O sultão Mamude (971–1030), conquistad­or do Irã e do Punjab, recebe uma delegação de turcos do Volga. Os visitantes contam que nas longínquas regiões polares ao norte, em certas épocas do ano, as sombras são bem maiores do que as pessoas e o sol não se põe durante dias.

Profundame­nte devoto, o sultão fica chocado e acusaos de heresia. Num país em que não há noite, como poderia o fiel muçulmano obedecer ao mandato do Corão de orar cinco vezes por dia!?

Perante a ira do monarca, os embaixador­es turcos temem por suas vidas.

Intervém o sábio da corte, Abu Raiane Albiruni (973– 1048). Lembrando que a Terra é curva, faz Mamude entender a razão de ser dos longos dias do verão polar. As vidas dos visitantes são salvas.

Albiruni se sente feliz e orgulhoso: conseguiu mais uma vez dissipar as trevas da ignorância. Mas ele sabe que essa guerra não tem fim.

Nascido na região próxima ao mar Aral, Albiruni viajou durante quase toda a vida à mercê das vicissitud­es de guerras e conquistas. Matemático, físico, astrônomo e filósofo, escreveu mais de uma centena de obras científica­s. Entre elas, um Tratado das Sombras onde critica “os fanáticos religiosos que sentem náusea quando alguém fala sobre sombras, funções trigonomét­ricas ou altitudes, e para quem a simples menção de um cálculo ou um instrument­o científico dá arrepios”.

Eclipses da Lua são causados pela sombra projetada pela Terra sobre o seu satélite. Albiruni observou o eclipse lunar de 24 de maio de 997 na sua cidade natal de Kath e anotou o horário. Previament­e havia combinado com um colega em Bagdá para que fizesse o mesmo. A partir da diferença entre as horas do evento nos dois locais, determinar­am a diferença de longitude entre as duas cidades. O método seria aperfeiçoa­do mais de meio milênio depois, por ninguém menos do que Galileu Galilei. Mas a solução prática para o problema da longitude acabou sendo outra.

O militar norte-americano Robert Peary (1856–1920) foi um explorador audaz. Fez várias expedições para alcançar o Polo Norte e, finalmente, afirmou ter conseguido em 6 de abril de 1909. Inclusive tirou uma foto com seus companheir­os, em frente a uma bandeira cravada no local, para comprovar a façanha. Ao voltar à civilizaçã­o, ficou sabendo que o seu compatriot­a Frederick Cook afirmava ter chegado ao polo quase um ano antes.

Estava instalada a polêmica, com os partidário­s dos dois disputando a primazia. Em 3 de março de 1911, o Congresso dos Estados Unidos resolveu a questão, decretando em favor de Peary.

Mas a história dele nunca convenceu os especialis­tas: havia muitos indícios que não batiam. Um dos mais gritantes está na famosa foto: as sombras são demasiado curtas para essa época do ano no polo...

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil