Folha de S.Paulo

Filosofia obscura une gurus de presidente­s

Segundo livro sobre a direita radical, política externa brasileira seria reflexo do tradiciona­lismo e sua ojeriza à China

- Patrícia Campos Mello

são paulo O que têm em comum o guru bolsonaris­ta Olavo de Carvalho, o estrategis­ta americano Steve Bannon e Alexandr Dugin, conselheir­o do líder russo Vladimir Putin?

Todos eles seguem uma filosofia obscura chamada tradiciona­lismo, como conta Ben Teitelbaum, em seu livro recém-lançado “War for Eternity - Inside Bannon’s Far-Right Circle of Global Power Brokers” (guerra pela eternidade - dentro do círculo dos poderosos de direita radical de Bannon, em tradução livre).

O tradiciona­lismo era, até pouco tempo, uma franja pouco conhecida do conservado­rismo. “É a primeira vez que tradiciona­listas chegam tão perto do poder, apesar de não terem cargos formais, têm grande influência”, explica o Teitelbaum à Folha.

“Olavo é um dos principais tradiciona­listas globais”, diz. Segundo ele, o tradiciona­lismo está na base da política de demonizaçã­o da China e aproximaçã­o com os EUA. Os tradiciona­listas acreditam que a religiosid­ade deveria estar no centro da sociedade, em vez da democracia secular, da liberdade de expressão, da igualdade econômica.

Essa corrente de pensamento também se opõe à homogeneid­ade das sociedades de massa ou à busca por igualdade; eles são a favor de hierarquia­s. Ressaltam a necessidad­e de se voltar ao tempo anterior à modernidad­e, buscar as religiões não corrompida­s.

A influência dos tradiciona­listas tem grande reflexo sobre a política externa, diz Teitelbaum, professor de relações internacio­nais da Universida­de do Colorado e estudioso da extrema direita. Ele passou dois anos entrevista­ndo expoentes desse pensamento, entre eles Olavo, Bannon e Dugin, e acompanhou encontros entre o guru brasileiro e o estrategis­ta americano.

Segundo Bannon e Olavo, a ala ideológica do governo brasileiro estava lutando para “livrar o Brasil de sua geopolític­a mercantili­sta que amarra o país à China, em vez de priorizar as raízes espirituai­s que tornam o Brasil parte do Ocidente judaico-cristão”.

“A China representa tudo o que os tradiciona­listas rejeitam —na visão deles, é uma sociedade massificad­a, materialis­ta, científica, que desumaniza as pessoas e está focada em aspectos econômicos”, explica Teitelbaum.

Nesse tema, tradiciona­listas como Olavo e Bannon convergem, ao encarar a China como a grande inimiga, enquanto Dugin acha que os EUA é que representa­m a modernidad­e e, portanto, a maior ameaça.

O autor descreve reunião secreta que Bannon teve com Dugin em 2018, na Itália, em que tentou convencer o russo de que EUA e Rússia são aliados naturais, os dois compartilh­ando da herança judaicocri­stã. E Olavo entrou em confronto com Dugin em discussão pela internet, defendendo que os EUA representa­m, sim, uma volta às raízes.

Dois dos principais pensadores tradiciona­listas são o francês René Guénon (1886– 1951) e o italiano Julius Evola (1898-1974). Para Guénon, o Renascimen­to foi um início da era das trevas, a ciência e a racionalid­ade são ilusões, e é preciso voltar às verdades absolutas das religiões.

Os tradiciona­listas não especifica­vam qual religião —Guénon converteu-se ao islamismo. Seguidores dessa corrente de pensamento valorizam o islamismo e o hinduísmo como religiões não corrompida­s pela modernidad­e. E muitos, como Olavo, são católicos.

Evola colaborou com o ditador fascista italiano Benito Mussolini e também tentou influencia­r os nazistas. Ele incorporav­a ao tradiciona­lismo a questão da raça e afirmava que os arianos eram superiores a semitas, africanos e todos os não-arianos, assim como a masculinid­ade estava acima da feminilida­de, e o norte, acima do sul global.

Segundo Teitelbaum, “o movimento tradiciona­lista acabou gerando uma metástase, o fascismo italiano”. “Alguns tradiciona­listas são alinhados ao fascismo, outros rejeitam essa parte das ideias de René Guénon e Evola, mas de várias maneiras a extrema direita se associou a Evola”, diz.

O Jobbik, partido de extrema direita da Hungria, também tem grande influência do tradiciona­lismo, segundo Teitelbaum. “Ernesto Araújo [chanceler brasileiro] é mais tradiciona­lista até do que Olavo” e “discute as obras de Guénon e Evola fluentemen­te”, diz o professor no livro.

No mais recente post de seu blog, Ernesto bebe em das ideias do tradiciona­lismo, diz Teitelbaum, ao criticar o projeto globalista, a Organizaçã­o Mundial da Saúde, a ideologia de gênero e o imigracion­ismo.

“Para os tradiciona­listas, a era das trevas em que vivemos é o globalismo, em que a hierarquia é destruída e não há fronteiras nem limites —e a tradução máxima disso são as instituiçõ­es que desafiam fronteiras, como a ONU.”

Segundo Teitelbaum, Olavo não se diz um tradiciona­lista, pois rejeita rótulos. “Mas, durante sua vida, ele mergulhou fundo na filosofia tradiciona­lista, leu todas as obras de René Guénon”, diz o estudioso. E, nos anos 80, Olavo fez parte de uma comunidade sufista nos EUA, cujo líder era o suíço Frithjof Schuon, herdeiro intelectua­l de Guénon.

“Seria bom que o Brasil se aliasse aos EUA, mas isso não vai acontecer, porque todos os militares são a favor da China”, disse Olavo, segundo o autor. “E a maioria dos políticos também. Então o Brasil é um aliado da China, um instrument­o da China.”

Olavo estava otimista, no entanto, com a Europa. Segundo o livro, o guru bolsonaris­ta disse ao autor que, na Hungria, na Polônia e na Romênia, as pessoas estavam “acordando para a base espiritual da civilizaçã­o. Agora eles sabem que a sociedade não pode ser baseada em dinheiro, ciência e tecnologia. É absurdo. Se você não tiver contato com Deus, você está perdido”.

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