Folha de S.Paulo

Covid-19 nos cadastros de saúde

De preto e de louco todo o mundo entende um pouco; negar desigualda­des afeta luta contra vírus

- Cida Bento Diretora-executiva do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda­des), é doutora em psicologia pela USP

“De preto e de louco todo o mundo entende um pouco.” Costumo utilizar frequentem­ente essa expressão em minhas palestras e textos. E me lembrei dela, no domingo (26), quando uma jornalista de um importante jornal televisivo disse que “apenas 5% dos pretos” têm morrido de Covid-19.

É uma pena que num assunto tão sério como o das relações raciais, num país onde a maioria da população é negra (53%), não pudemos contar nessa reportagem com uma especialis­ta que abordasse adequadame­nte esse tema.

Como destaquei na coluna anterior, o Brasil coleta o dado cor/raça há 148 anos, e há uma extensa e qualificad­a literatura sobre esse tema, inclusive na área da saúde.

Importante­s institutos de pesquisa, como IBGE, Ipea, Dieese e Fmerc3004*undação Seade, dentre outros, utilizam as categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena. E o somatório das categorias preto e pardo constitui o que chamamos de população negra.

No entanto, os desafios no tratamento do dado raça/cor estão sempre presentes, como nos mostra anova ferramenta do Ministério da Saúde com registro de casos suspeitos sobre a Covid-19 (e-SUS VE), em funcioname­nto desde 27 de março.

Dada a importânci­a de alcançar com precisão o impacto da Covid-19, usando a ciência para orientar as políticas públicas, algumas informaçõe­s têm preenchime­nto obrigatóri­o, dentre elas sexo, idade, unidade federativa e tantas outras. Perfeito, é disso que precisamos!

No entanto, avariável“raça/ cor”, nessa ferramenta, não tem preenchime­nto obrigatóri­o, o que traz com oc ons e quência 97% de não preenchime­nto desse dado nos sistemas de notificaçã­o (e-SUS VE). Aqui vale destacar que uma campanha virtual sobre a importânci­a desses dados vem resolvendo o problema de não resposta em muitos cadastros públicos e privados do Brasil.

A despeito disso, analisando os dados preenchido­s, os pretos apresentam risco maior de morrer iguala 62% em relação aos brancos. Os riscos são maiores também para os pardos e os indígenas.

O aumento dos óbitos por coronavíru­s em São Paulo chegou a ser até dez vezes maior em bairros com piores condições sociais. Na faixa etária de 40 a 44 anos, o risco de morte é dez vezes superior. Enfrentar o desafio da desigualda­de nas periferias exige, sim, o reconhecim­ento de diferentes saberes e uma estrutura forte.

Assim é que o hospital da Brasilândi­a, bairro mais negro da cidade e aquele com mais mortes (81), deveria ter ficado pronto em 2017, situação em que teria 305 leitos, mas sua construção havia sido interrompi­da e só foi retomada recentemen­te.

Como esse, muitos equipament­os de saúde foram prejudicad­os pelo Brasil afora. O Inesc (Instituto de Estudos Socioeconô­micos) aponta que, em 2019, o SUS perdeu R$ 20,2 bilhões em razão do teto de gastos, o que gerou a falta de leitos nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) inclusive nos estados do Norte e Nordeste, impedindo uma resposta mínima à pandemia.

Nesse sentido, o Inesc, em consonânci­a com inúmeras instituiçõ­es brasileira­s, reivindica a revogação imediata do teto de gastos e a recomposiç­ão dos orçamentos.

Enfim, com certeza toda a população brasileira está sendo profundame­nte atingida pela pandemia em diferentes níveis de suas vidas e duramente afetada por esse processo.

No entanto, conhecer como as mulheres, os indígenas, os quilombola­s, os negros e as negras, os moradores de periferias, os jovens, os idosos estão sendo diferencia­lmente atingidos ajuda a tomar decisões de toda ordem, tais como: onde ampliar o número de leitos, de profission­ais de saúde, de provimento de alimentaçã­o e produtos de higienizaç­ão, de ambulância­s, de diversidad­e de campanhas públicas etc...

A negação das desigualda­des ou a improvisaç­ão no tratamento delas só atrasa e fragiliza o enfrentame­nto da pandemia.

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