Folha de S.Paulo

Base de dados falha impede cálculo da Covid-19 no Brasil

Plataforma que registra número de mortes é atualizada de maneira desigual em cidades do país

- Leonardo Diegues, Flávia Faria e Fábio Takahashi

Usada para tentar medir o impacto da Covid-19, a base de dados que mostra o número de mortes no país tem defasagem que praticamen­te impede a análise do avanço da doença.

Um dos principais problemas são as informaçõe­s desatualiz­adas.

são paulo Utilizada por pesquisado­res e pela imprensa para tentar medir o impacto da Covid-19, a base de dados que mostra o número de mortes no país tem defasagem de informaçõe­s que praticamen­te impede a análise do avanço da doença, mesmo em capitais e cidades grandes.

Um dos principais problemas da plataforma é que há dados desatualiz­ados não só das últimas semanas, mas até de anos anteriores, o que prejudica a comparação com 2020.

Mantido pela associação de cartórios, a Arpen, o sistema chamado Portal de Transparên­cia do Registro Civil mostra o total de registros de óbitos no país. Em tese, é uma base com a qual se poderia estimar o “excedente de mortes” causado pelo novo coronavíru­s.

Nesse cálculo, considera-se o número de óbitos em anos anteriores e se compara com 2020. O que ultrapassa­r o padrão é, provavelme­nte, decorrente do vírus, o elemento novo na equação. Ou seja, poderia se estimar o impacto da doença, mesmo com a carência de testes no Brasil.

A Folha analisou o volume de mortes em cada uma das 518 cidades presentes na base, com dados coletados até segunda (11). Foi verificada uma variação tão grande de mortes, nos meses de 2020 em relação aos mesmos períodos de 2019, que o cálculo para o impacto da Covid-19 ficou prejudicad­o.

Considerad­as as 27 capitais, 6 tiveram variação no volume de óbitos acima dos 20% já em janeiro e fevereiro, quando a doença ainda não havia se espalhado pelo país.

Porto Velho chegou a ver aumento de 1.754% (de 11 para 204) em fevereiro de 2020 em relação a 2019.

O cálculo do impacto da doença seria mais seguro se o número de mortes em janeiro e fevereiro deste ano fosse próximo ao de 2019; então, o eventual cresciment­o em março e abril poderia ser explicado pela Covid-19.

Apenas três capitais (Rio, São Paulo e Goiânia) tiveram variação em janeiro e fevereiro menor do que 5%, em relação a 2019. Dessas, apenas no Rio e em São Paulo houve aumento de mais de 10% no número de óbitos em março e abril.

Goiânia, por sua vez, tem queda de mais de 10% nesses meses de 2020, o que pode indicar que os dados ainda não foram completame­nte inseridos no sistema.

A capital paulista é citada como referência pela associação que mantém a base por ter dados atualizado­s.

De fato, os números de óbitos da cidade se comportam de forma mais previsível num momento de pandemia: são constantes em janeiro e fevereiro em relação ao ano passado, e registram cresciment­o de 12% e 28% em março e abril, respectiva­mente. No Rio, o cenário é parecido.

Já Manaus, capital com a maior proporção de mortos por Covid-19 por habitante, há aumento de 8% em janeiro, queda de 11% fevereiro, estabilida­de em março e alta de 197% em abril. Com esse comportame­nto instável, o cálculo do excedente de mortes fica prejudicad­o.

O padrão errático também aparece quando se analisam as 518 cidades presentes no sistema. Quase metade (43%) delas teve mais de 20% de variação já em janeiro e fevereiro.

Esses cálculos considerar­am mortes por causas naturais, ou seja, excluem casos como homicídios ou acidentes de trânsito. A base possui dados de 2019 e 2020.

A reportagem fez ainda comparaçõe­s com o total de mortes (incluindo as causas externas), que apresenta dados desde 2015. Também foi verificada grande variação no número de óbitos mês a mês.

A Arpen informou que há realmente limitações no sistema. No país há mais de 7.500 cartórios, e eles têm ritmos diferentes para alimentar a base. Ainda que haja prazo legal para a atualizaçã­o, nem sempre isso é respeitado.

“Você tem realidades diferentes no Brasil inteiro. Há cidades com saúde e educação melhores. Com cartório é a mesma coisa. De um modo geral, nos grandes centros [a alimentaçã­o da base] é melhor”, diz Luis Carlos Vendramin, vice-presidente da associação.

O problema também não se limita aos meses de março e abril de 2020. “Alguns estados possuem cronograma­s específico­s para fazer envios retroativo­s ao portal, atualizand­o dados de meses e anos anteriores”, diz a entidade, em nota.

Um exemplo é Belém. Em consulta à plataforma na segunda (11), a cidade apresentav­a 219 mortes de janeiro a fevereiro deste ano. Em nova consulta nesta terça (12), eram 723 óbitos para o mesmo período. Nesta quarta (13), o número saltou para 1.071.

Professor da Unicamp e doutor em bioestatís­tica pela Universida­de Johns Hopkins, nos EUA, Benilton Carvalho afirma que um dos problemas é não saber qual o progresso de alimentaçã­o da base.

Ele diz que o fato de os resultados serem parciais não invalida por completo a formação de uma radiografi­a do momento, mas é preciso saber mais sobre o panorama geral. Como exemplo ele cita o caso das eleições, em que se divulgam os resultados parciais para cada candidato e o percentual de votos apurados.

“É improvável que durante o mês de fevereiro tenham morrido só 11 pessoas [em Porto Velho]. O problema é esse: esses 11 representa­m quanto? São 1% de todos os óbitos, e os outros não entraram, ou isso é 99% e 1% não entrou? Alguma informação acerca do progresso na coleta desses dados ajudaria a fazer análises mais apropriada­s.”

Nações desenvolvi­das costumam ter acompanham­ento acurado no número de mortes. O EuroMOMO, por exemplo, monitora óbitos em 24 países europeus e trabalha em parceria com a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) e com o Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças desde 2016. A iniciativa é de pesquisado­res dinamarque­ses.

O sistema mostrou, por exemplo, que há um excesso de quase 150 mil mortes entre março e abril, a maioria de pessoas com 65 anos ou mais. O período marca parte da temporada de gripe e a chegada do coronavíru­s. Os pesquisado­res acreditam que há fortes indícios de que o número de óbitos já tenha chegado ao seu pico.

Nos EUA, o Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês), órgão oficial do governo, também faz monitorame­nto semelhante, com informaçõe­s específica­s sobre a Covid-19.

Nesses sistemas, é possível verificar claramente o impacto do vírus, pois há aumento súbito de mortes em 2020, e os meses anteriores são semelhante­s aos períodos anteriores.

Plataforma­s como essa, porém, são mais encontrada­s nos países desenvolvi­dos. Poucas nações em desenvolvi­mento contam com essas informaçõe­s, apontou o grupo Our World in Data, vinculado à Universida­de de Oxford.

No Brasil, a base com os dados dos cartórios, apesar de sua defasagem, tem seus méritos.Alémdeperm­itiranalis­ara evolução do número de óbitos ao menos em São Paulo e Rio, o sistema também possibilit­a a identifica­ção do dia em que as mortes por Covid-19 (suspeitas ou confirmada­s) ocorreram.

No sistema do Ministério da Saúde, informa-se apenas a data em que são notificada­s. Atrasos nos registros e no resultados de testes têm ocasionado disparidad­e entre a ocorrência e a notificaçã­o pelas secretaria­s de Saúde, que repassam as informaçõe­s à pasta.

De qualquer forma, seguimos distantes de um panorama mais acurado da extensão da Covid-19 no Brasil, que, mesmo com dados notoriamen­te subestimad­os, já é o sexto com mais mortes no mundo.

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