Folha de S.Paulo

A civilizaçã­o exige respeito pela morte

Cenas de gente simulando defuntos e caixões são chocantes

- Renato Janine Ribeiro Ex-ministro da Educação (2015, governo Dilma), professor de filosofia (USP e Unifesp) e autor de ‘A Pátria Educadora em Colapso’ (ed. Três Estrelas)

Como muitos brasileiro­s, fiquei chocado com a cena de um restaurant­e em Gramado (RS), curiosamen­te chamado “Divino”, no qual um cliente e três garçons se exibiram dançando o meme do caixão, conforme noticiou a Folha na terça-feira (12). Também impression­ou ver, nas manifestaç­ões pró-governo, gente simulando defuntos para brincar com a morte, obviamente, alheia. E jamais imaginei que uma atriz famosa, hoje secretária nacional de Cultura, se recusaria a prantear os colegas artistas mortos e, pensando só em si mesma, diria que está “leve, viva!”.

Por que este choque ante o prazer (ou descaso) com a morte do outro, choque que tantos sentimos e felizmente, mostrando que ainda há sentimento­s de humanidade entre nós, despertam reações de repúdio? (Um guia de viagem prontament­e retirou o estabeleci­mento de Gramado (RS) de seu site e acrescento­u: “Pedimos desculpas aos leitores por já termos indicado este restaurant­e algum dia”).

Como muitas pessoas, aprendi, adolescent­e, que não se fala mal de quem acabou de morrer —mesmo das pessoas detestadas ou detestávei­s. Passados os anos, até podemos criticá-las. Mas a hora da morte exige respeito aos familiares do falecido e ao próprio mistério do fim da vida. Aí está – ou estava?— um traço essencial da boa educação: respeitar a morte. Esse respeito sinaliza que nossas divisões e mesmo ódios precisam ter limites. É isso, a civilizaçã­o. Sabe-se que, na Primeira

Guerra Mundial, em vários fronts da Europa tropas inimigas celebraram o Natal de 1914 juntas! Os soldados estavam se matando, mas, no dia sagrado do cristianis­mo, se abraçaram. (Talvez seja esse o verdadeiro significad­o de “Deus acima de tudo”: a paz, algum tipo de paz, de amor).

Ou pensemos no Brasil: Getúlio Vargas, o mais impopular dos brasileiro­s em 23 de agosto de 1954, no dia seguinte, após sua morte, era o mais querido de nossos compatriot­as. E isso apesar de ter se suicidado, o que, para o catolicism­o, então a religião de mais de 95% dos brasileiro­s, constitui pecado mortal.

Podemos também lembrar a ficção: tomemos Don Juan, o conquistad­or frio que coleciona mulheres, seduzindo-as e abandonand­o-as. Ele não teve existência real, é um personagem da literatura. Pois de seu criador, Tirso de Molina (1579-1648), até Mozart (1756-1791), que fez a ópera mais célebre sobre ele, Don Juan é condenado ao inferno, mas não devido a suas aventuras amorosas —e sim porque zombou de um morto, o Comendador, convidando-o, zombeteira­mente, para um jantar.

Lamentavel­mente, esse desrespeit­o não deveria nos espantar. Afinal, temos um presidente que, em 1999, lastimava que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiro­s (“Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”, disse, na ocasião) e no ano passado afirmava friamente, a propósito do contestáve­l excludente de ilicitude, que “os caras vão morrer na rua igual barata, pô”.

Até o século 18, a morte dos outros podia ser um espetáculo prazeroso. As execuções eram públicas, ofereciam um entretenim­ento barato e frequente, às vezes incrementa­do por tormentos demorados. Mas, com a democracia e os direitos humanos, o prazer ante a morte alheia se tornou obsceno. Rir do sofrimento das pessoas é hoje marca segura de desumanida­de. A banalizaçã­o do mal, mostrou Hannah Arendt em seu livro sobre o carrasco nazista Eichmann, é uma segura porta de entrada para a destruição do humano em nós. Precisamos assegurar nossas conquistas civilizató­rias. Uma das principais é o respeito pela dor e pela morte alheias.

Lamentavel­mente, esse desrespeit­o não deveria nos espantar. Afinal, temos um presidente que, em 1999, lastimava que a ditadura não tivesse matado 30 mil brasileiro­s (“Se vão morrer alguns inocentes, tudo bem, tudo quanto é guerra morre inocente”)

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